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Quarta-feira, 30 de Julho de 2008
A medida certa de asa

 

 

Em 1899, o biólogo britânico Herman Bumpus mediu as asas de um grande número de pardais que morreram numa tempestade. O que ele descobriu foi que os a maioria dos pardais mortos eram os pardais que tinham asas manifestamente mais compridas ou mais curtas que a média. Isto é, os pardais que tinham uma medida de asa diferente da média foram os que morreram em maior quantidade.
 
Contrariamente ao que pensamos, possuir um desenvolvimento intermédio de uma determinada característica pode não representar uma desvantagem, porque o sucesso de uma pessoa não está necessariamente relacionado com a sua genialidade. O apóstolo Paulo chega mesmo a fazer uma apologia da normalidade ao dizer que as «coisas fracas» confundem as fortes e que «as coisas que não são» confundem «as que são». Os relatos bíblicos abundam em exemplos de pessoas que de destacaram a partir da sua normalidade:
 
·         Moisés não queria liderar o seu povo porque tinha um problema de dicção.
·         Gideão não queria ser o libertador da nação por ser de uma família irrelevante.
·         Jeremias não queria ser profeta porque via-se a si próprio como criança.
 
Optimizar é uma expressão que faz cada vez mais parte do nosso vocabulário. Esta expressão significa que você consegue tirar o máximo partido de uma dada característica ou circunstância, por mais vulgar ou normal que seja, de modo a obter o melhor resultado possível.
 
Podemos sentir-nos como um pardal de asa normal, o mais comum dos mortais. O que necessitamos, contudo, é aprender a optimizar a nossa medida de asa, a nossa aparente medida de fraqueza, de modo a nos tornarmos como aqueles acerca dos quais a epístola aos Hebreus diz que «da fraqueza tiraram forças».
 
Você tem a medida certa de asa para imprimir um impulso à sua vida e levantar voo de modo a «[subir] com asas como águias» (Isaías 40:31).

 

Luís Melancia

publicado por Re-ligare às 21:32
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Terça-feira, 29 de Julho de 2008
Sem lugares sagrados

                   

 
 
 
1. Para quem as não pode ter, é indecente perguntar o que vai fazer das férias e, para quem as tem, a primeira preocupação não é – salvo raras excepções – de ordem artística, filosófica, teológica ou espiritual, mas de ordem económica. Resolvida esta, existem muitas empresas de viagens para todos os gostos, sem esquecer o turismo religioso. Há santuários que atraem milhões de visitantes e peregrinos.
A chamada Terra Santa – terra maldita, terra de todos os ódios – continua a ser um destino obrigatório para pessoas que colam o sobrenatural a certos lugares. Com a declaração do Ano Paulino, os roteiros das viagens apostólicas de S. Paulo serão uma mina apetecível.
As quatro narrativas do Novo Testamento que procuram mostrar, com preocupações e perspectivas diferentes, quem era aquele galileu fascinante, Jesus de Nazaré, nascido há dois mil anos, numa aldeia desconhecida do Império Romano, executado como um malfeitor, perto de uma velha pedreira nos arredores de Jerusalém, quando tinha à volta de trinta anos, não podem ser interpretadas como guias de “lugares santos”.
Seria ridículo, no entanto, desprezar o itinerário concreto, histórico e geográfico de Jesus de Nazaré que continua a apaixonar arqueólogos e historiadores e, aos quais, já aqui, me referi várias vezes. Mostrei também o desejo de ver traduzida e editada, em Portugal, uma obra deliciosa de José Antonio Pagola que, apesar das suspeitas eclesiásticas, teve, em poucos meses, várias edições em Espanha. Acaba de ser publicada em português: Jesus. Uma abordagem histórica (Gráfica de Coimbra 2).
Como diz o autor, a execução de Jesus punha em causa toda a sua mensagem e todo o seu trabalho. Aquele fim tão trágico suscitava uma grande interrogação mesmo nos seus seguidores mais fiéis. Quem teria razão: Jesus ou aqueles que o tinham executado? Deus, de que lado estava? Na cruz, não era só Jesus que tinha sido morto. Com ele, ficava em nada a sua mensagem e as esperanças que suscitara.
Se Jesus tinha ou não razão, só Deus o poderia dizer. Nos textos que chegaram até nós, ainda hoje se pode perceber a alegria dos primeiros discípulos pela descoberta de que Deus não tinha abandonado Jesus: «Aquele que vós crucificastes, Deus ressuscitou-o dos mortos», isto é, confirmou a sua vida e a sua mensagem, tornou-o para sempre uma misteriosa fonte de vida.
2. O rigor histórico não afasta J.A.Pagola de conclusões pastorais. «Jesus não deixou atrás de si uma “escola”, ao jeito dos filósofos gregos para que fosse aprofundada a última dimensão da realidade. Também não pensou em nenhuma instituição que assegurasse no mundo a verdadeira religião. Jesus deu início a um movimento de “seguidores” que se encarregariam de anunciar e desenvolver o projecto do “reino de Deus”. Foi daí que nasceu a Igreja de Jesus. Por isso, não há nada tão importante para nós como renovar, incessantemente, dentro da Igreja, o seguimento fiel da sua pessoa. Seguir Jesus é o único que nos torna cristãos».
O que indignava Paulo de Tarso eram, precisamente, os seguidores de Cristo, as comunidades de judeus que atraiçoavam a Lei de Moisés e as suas tradições. A forma, porém, como se deu a sua conversão desinteressou-o do percurso terrestre de Jesus. Sabia que Ele era da descendência de David, nascido de mulher como toda a gente e sob a Lei de Moisés como qualquer outro judeu. Não era um mito. Mas teve a experiência de que Jesus não estava para trás, estava à sua frente, precedia-o em todos os caminhos do mundo: do crucificado maldito tinha nascido o impossível. Foi essa experiência que fez de Paulo uma nova criatura e o tornou sua testemunha entre judeus e gentios: Deus e a sua salvação não estavam dependentes de nenhum povo, cultura ou religião.
3. S. Paulo percorreu muitos lugares e marcou-os com textos impressionantes. Como diz G. Steiner (em Os Logocratas), Paulo de Tarso foi, além do mais, «um dos muito grandes escritores da tradição ocidental. As suas epístolas pertencem ao número das obras-primas duradouras da retórica, da alegoria estratégica, do paradoxo e dos trabalhos pungentes de toda a literatura. O simples facto de São Paulo citar Eurípedes confirma estarmos na presença de um bookman, de um homem do livro quase nos antípodas do Nazareno que ele metamorfoseia em Cristo. (...) A cristologia paulina desemboca no catolicismo romano, com a sua majestosa estrutura de doutrina e de exegese cristãs, com o corpus imenso das narrativas patrísticas, as obras dos Padres e dos Doutores da Igreja, o génio literário de Santo Agostinho e a Suma, bem intitulada, de Tomás de Aquino».
No cristianismo, porém, as tensões iniciais entre “a Letra e o Espírito” permaneceram e eternizaram-se. O cristianismo não é uma religião do livro. Jesus não escreveu nada, mas provocou dois mil anos de escrita, de música, de arquitectura, de artes plásticas, etc.
Em todas as linguagens, em todos os lugares, em todas as culturas, o cristianismo só tem uma coisa a dizer: quem nos poderá separar do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 8, 31-39)? Seja no trabalho, no descanso, na saúde ou na doença, na vida ou na morte.
Até Setembro!

                  

Frei Bento Domingues, o.p.
(1º Director da Lic. em Ciência das Religiões)
Artigo publicado no lornal Público, no dia 27 Julho 2008

 

publicado por Re-ligare às 11:16
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Segunda-feira, 28 de Julho de 2008
Humanidade violenta

                   

Introdução
Há um ano atrás o país adormecia chocado com uma reportagem televisiva. Não era uma produção cinematografica mas a dura realidade da violência na escola. Governantes, professores, psicólogos e alunos foram então chamados reflectir e, na formulação das várias opiniões, explicarem causas e aventarem soluções.
Um ano passou sobre este episódio e a realidade é ainda mais cruel. Não tanto pelo crescimento da epidemia e dificuldades no combate a este «vírus» mas pela inércia que vigora. Um ano depois, o assunto apenas voltou a ser matéria de discussão devido à polémica gerada em torno do novo estatuto do aluno.
As próximas linhas não pretendem ser uma tese cientifíca sobre a violência praticada no âmbito vida escolar mas antes uma reflexão sobre a violência presente no interior do ser humano. Isto porque, para o autor das mesmas, é importante colocarmo-nos a montante se com eficácia queremos resolver os problemas a juzante. Assim, procuramos partir do local onde a maioria destes debates terminaram para chegar mais além, isto é, ultrapassar a ênfase das condições sociais do homem, para compreender a própria natureza do homem. Não pretendemos apontar soluções correctivas mas contribuir para que, no alargar dos horizontes, as estratégias a adotar possam contemplar medidas de prevenção da violência a partir da compreensão da natureza do ser humano como um todo.
               
 
  1. O que é a violência?
Não podemos reflectir convenientemente sobre este tema sem antes nos perguntarmos: O que é a violência? Isto, para que o conceito de violência não seja alienado e com ele as consequentes estratégias de prevenção no combate à mesma.
A violência é, na sua origem, e até mesmo na sua essência, um conflito. E um conflito que, por falta de cooperação de ambas as partes pode ser agravado. É esta crise, sobretudo de comunicação, que suscita uma tensão conducente a um processo que, partindo de uma simples atitude contra o direito de alguém pode terminar na mais cruel tirania. Gostava aqui de fazer uma resalva para reflectirmos que violência não é apenas um acto irascivél, uma agressão verbal ou física. Muitas vezes ela nasce e prolifera em atitudes de indiferença que, muitas vezes camufladas, não deixam contudo de serem uma expressão violenta não menos preocupante.
 
Não podemos ficar indiferentes perante as guerras, os ataques terroristas, a barbárie da tortura que têm vindo a ser praticada em prisioneiros de guerra ou civis, o aumento da deliquência juvenil e a associação criminosa de grupos marginais, a violência doméstica que flagela mais de 15 mil mulheres e o aumento dos maus-tratos dos pais aos filhos. Todavia, também precisamos de nos preocupar do mesmo modo, senão até com maior afinco, para combateer a violência na condução dos automobilistas, a violência de uma sociedade dopada em ansioliticos e anti-depressivos, a violência inerente ao consumo de drogas e alcool em populações cada vez mais jovens e, neste contexto geral, a violência praticada nas escolas.
A violência consiste na violação dos direitos do outro.
 
A haver uma solução para a violência nas escolas, ela não se tornará efectiva e duradoira sem uma mudança da comunidade onde está inserida ou seja, mudança de pensamento, inclusive de cultura. Precisamos abandonar a concepção de uma violência associada estritamente ao derramamento de sangue a qual, nos aliena e nos torna indiferentes perante a violência praticada no campo das palavras, dos sentimentos das emoções e atitudes mais rudimentares. Pior que a alienação é a adopção destas práticas como forma de comunicação aceitável.
              
               
  1. A vida social contemporânea reveste-se de uma violência sem precedentes!
 
Os factos confirmam uma crescente manifestação de comportamentos violentos e isto, quer no âmbito de acções individuais, quer colectivas.
Todavia, mais do que a quantidade de violência precisamos observar a evolução da qualidade da violência. A barbárie praticada nos campos de batalha, associada no passado a uma sociedade bélica, não foi extinta. Dissimulada, constatamos que ela deflagra e coabita na sociedade hodierna – paradoxalmente herdeira do direito romano e da tradição judaico cristã.
Por mais que labore, quer as instituições governamentais, quer as científicas não têm conseguido encontrar a melhor resposta para as múltiplas tensões que diariamente deflagram nos relacionamentos sociais. Diferenças culturais, racismo, injustiça social, infidelidade, ódios e vinganças levam o indivíduo a descorar quaisquer valores, inclusive os cívicos. Sobretudo a desenvolver um falso conceito de justiça: “popular” ou “pessoal”.
               
             
  1. Quais as razões que podem estar no actual clima de violência que impera na nossa sociedade?
 
Temos por tentação pensar na violência como um produto da sociedade moderna fruto do agravamento das condições sociais. De facto as tensões e descriminações sociais acentuam-se. Urge reflectir urgentemente como combater a criminalidade infantil ou, como havemos de travar a crescente onda de delinquência juvenil?
 
Não podemos negar a realidade: as relações difíceis multiplicam-se. Como é possível o término de alguns namoros terem contornos tão horrendos? Continuamos a ouvir falar cada vez mais de violência doméstica, onde impera as agressões e os abusos sexuais! Mais de 7 mil mulheres foram vítimas de violência no primeiro semestre do ano. 
 
Por outro lado, podemos redobrar a vigilância nas portas dos aeroportos ou das escolas, porém, a violência entra-nos pelas janelas das nossas casas mediante programas repletos de ódio e vinganças.
 
Permanecer ou eternizar esta questão esconde parte do problema e hipoteca a resolução. O conflito não é apenas social nem tão pouco reside no choque de gerações. O problema está em nós não no vizinho.
            
               
  1. Educação para a prevenção da violência começa em nós.
 
O modelo educacional por excelência deveria ser o contexto familiar. A educação para a não-violência deveria começar em nossas casas. Porém, o nosso grande problema é que a família faliu. Vivemos de um modo geral completamente destruturados. Falamos da violência nas escolas mas os nossos filhos vivem as mentiras, as discussões e a toda sorte de violência na sua casa. Por outro lado, quando há alguma estabilidade emocional, quantas vezes abafamos as nossas consciências e incitamos os nossos filhos a retorquirem do mesmo modo quando os mesmos são alvo de violência dos colegas? Uma atitude muitas vezes legitimada sob a forma de auto-educação para a vida dura que eles irão enfrentar ou sob o epíteto de uma afirmação de independência.
No lugar de prevenção para a educação os pais são os primeiros a fomentar as formas de violência mais rudimentares. Não há violência boa ou má? Há violência e deve ser encarada como nocisa e erradiada desde o seu início. Quantos pais procuram educar seus filhos na resolução de conflitos com os irmãos? A resposta mais generalizada é: - “São irmãos entendam-se!!!!” Que autoridade tem um pai que assiste a um filme violento de proibir o seu filho de assistir ao mesmo? É fácil ignorar o aspecto nocivo e esperar que ele seja o suficiente maduro para perceber que se trata de uma obra de ficção.
 
A prevenção contra a violência só terá significado se a aceitarmos como uma questão nossa. Não do vizinho. Todos nós somos potenciais agentes de violência. Assim, como pais devemos estar atentos para o facto de capitalizar os confrontos de opinião na família em momentos de diálogo e reflexão. Os nossos filhos não devem crescer isolados dos problemas ou tensões familiares, mas da demonstração violenta do poder quer em palavras, agressões verbais ou até mesmo físicas entre os seus progenitores.
Independentemente das posições que as várias escolas sociológicas adoptam sobre a real influência da violência da televisão sobre as crianças e isto, tendo em conta o factor das suas condições sociais, como educadores não podemos ficar indiferentes aos conteúdos a que os nossos filhos podem ser expostos. Dos programas de animação infantil repletos de violência físíca ao entertenimento para adultos que, testando fidelidades, nos conduz à violação de sentimentos e consequente violência verbal, etc... directa ou indirectamente os meios de comunicação difundem imagens e mensagens que, quando não são criticadas, isto é, abordadas reflecivamente, podem ser catalizadoras de violência em determinadas circunstâncias. È responsabilidade dos pais educar os filhos para a distinção entre os produtos construtivos do lixo, ainda que este se apresente embalado com certificado de qualidade.
              
                
  1. Qual deverá ser a melhor resposta a este problema?
 
De uma forma geral, a violência deve ser abordada por todo o tipo de instituições. Desde as governamentais às religiosas, destaca-se em especial as instituições responsáveis pelo entretenimento, o qual de um modo aparentemente inofensivo, difunde uma mensagem com impacto irreversível. Para o bem, ou mal, os mídia têm um enorme potencial num contributo ímpar na luta contra a violência. Infelizmente os interesses económicos inviabilizam muitas vezes tais intentos. Contudo, um esforço contínuo entre todos os parceiros de educação cívica, formação pessoal etc.. poderá conduzir as próximas gerações a uma séria responsabilidade social. A abordagem a este problema passa, indispensavelmente, entre outras coisas pela educação para a gestão de conflitos. Crianças, adolescentes e adultos, deverão ser educados para a gestão dos conflitos que deflagram no seu cotidiano, sejam eles de menor ao maior gravidade. Se uma criança for educada pelos país a resolver a gestão dos seus conflitos com os irmãos, quando crescer estará mais preparada para o embate do conflito de interesses no mercado laboral. Todavia, no horizonte social e político não se vislumbra esta desejada solução. Será nosso destino viver dominado por este clima de violência? Não!
 
Se para alguns a solução passa por mais policiamento, mais tribunais, mais prisões, para outros tudo isto fica a juzante. Não podemos combater apenas as consequências inerentes à violência e desprezar a montante a fonte dessa mesma violência. Corremos o risco de alienarmo-nos em múltiplas questões e, não só nos desgastamos, como o nosso tempo esgota. Deste modo é com relevância que a Bíblia consagra especial atenção ao tema da violência, não só ousando abordá-la sem rodeios como, corajosamente, apresenta um plano de combate. O plano de Deus em erradicar a violência do homem.
 
Assim, para aqueles que ousam ler e integrar os ensinos da Bíblia crendo que os mesmos contribuem para a resolução dos problemas do quotidiano, podemos identificar alguns princípios transcendentais:
 
5.1 Reconhecer que a natureza humana é conflituosa.
 
Todos estes conflitos acima referidos resultam de um conflito pessoal por resolver. A instabilidade emocional leva o homem a comportamentos que comprometem os seus relacionamentos. Segundo as Sagradas Escrituras os conflitos interpessoais têm origem no conflito individual e este encontra a sua génese no conflito entre o homem e Deus. No mais ancestral dos crimes relatado no livro de Génesis encontramos um conflito entre irmãos que termina num homicídio. Na observação da narrativa podemos verificar que a violência é iniciada nos sentimentos interiores de Caim. O conflito interior de Caim dá lugar ao conflito com o seu irmão. Primeiro, não tomando a iniciativa de ofertar a Deus ousa fazer também a sua oferta - provavelmente numa atitude de competitividade em ser o preferido. Segundo considerando-se preterido devido às suas motivações em ser o eleito, rejeitou o apreço que Deus demonstrou pela a atitude voluntária do seu irmão. O sentimento de rivalidade assume o controlo das suas emoções e a solução é aniquilar o seu adversário. Por mais antiga que seja esta história, ela continua actual. Ela revela-nos a fonte da nossa violência: o ciúme que sentimos do outro – pelo que é ou tem.
 
Conforme o mesmo texto refere as motivações humanas erradas tiveram origem neste ciúme. Pois também Adão e Eva tiveram ciúmes dos privilégios de Deus. Invejando-o desejaram ser igual a Ele e desobedeceram aos estatutos divinos. Esta desobediência de Adão teria como efeito a separação entre Criador e criatura, ficando o homem entregue a si mesmo (Gn 2 e 3). A Bíblia refere, como resultado dessa condição, os consequentes distúrbios individuais e, em consequência disso, os sociais. Muitas são as histórias bíblicas cuja raiz da violência assenta no espírito do ciúme que gera rivalidades (Gn 27 e 37) No tempo de Jesus, vemos a mesma rivalidade disputada pelos seus discípulos pedindo ao mestre que lhes confiasse os lugares principais, de maior poder e prestigio. (Mc 10, 35-37) Separado de Deus, o homem exterioriza os sentimentos que o perturbam, a fonte que, conforme afirmam os textos sagrados, o destrói.
O combate à violência começa no reconhecimento da nossa natureza violenta e no assumir dos nossos sentimentos de inveja e egoísmo. Precisamos identificar este desejo de sermos maiores em poder ou prestígio ou até mesmo o medo de não sermos estimados como gostaríamos – má auto-estima também pode gerar ciúmes e conduzir-nos a comportamentos que potenciam a violência.
 
5.2 Atrever a uma mudança interior…
 
Podemos identificar esta fonte porém, como podemos nós escapar dela?
Para além de identificar as raízes da violência a Bíblia apela a uma mudança. Não apenas de atitudes mas acima de tudo de carácter. Isto porque, muitas vezes os nossos instintos e desejos só não se tornam uma ameaça para os outros porque temos medo das consequências. Não matamos ou roubamos porque condenamos o acto mas porque tememos a pena. Obedecemos às leis que regulam a vida social por medo e não pelo respeito aos direitos dos outros.
Com efeito o paradigma que Jesus Cristo deixou como regulamento da vida social por excelência; Amar a Deus acima de todas as coisas e o próximo como a nós mesmos (Cf. Mc 12:28-34), torna-se o mais relevante na medida que apela a uma mudança do nosso carácter. Exige que tenhamos um comportamento assente no sentimento de amor que temos por nós próprios e não nos escondermos atrás de comportamentos, ainda que socialmente correctos as motivações estão erradas.
 
Por outro lado, estas palavras nos colocam perante o facto de que a mudança capaz de remover todo o ódio que impera no coração do homem depende da restauração do seu relacionamento com Deus. Sozinho o homem não é capaz deste amor. Por isso, na medida em que ele consegue cumprir a primeira premissa - Amar a Deus - será então capaz de responder à segunda - Amar o outro como a si mesmo. No texto do profeta Ezequiel (36-37) verificamos a relação destas duas premissas. Haverá um tempo em que Deus promete transformar os nossos corações de pedra em carne, ou seja, a nossa dureza em sensibilidade. Consequentemente esta restauração não resolve apenas o nosso conflito pessoal, como manifesta-se imperativamente na nossa vida social. A harmonização da vida conjugal, familiar, amigos e colegas, traduzirá a paz que alcançamos na reconciliação com Deus. Uma paz que transforma o indivíduo, reconciliando-o consigo mesmo, e por isso o conduz à paz com os outros.
 
5.3 Atrever a uma nova atitude na vida
 
O célebre diálogo entre Jesus e Nicodemos deixa-nos perante a inauguração desse novo tempo e a certeza da possibilidade de uma nova humanidade. Não uma reencarnação ou retorno ao útero materno mas uma nova atitude na vida. Uma oportunidade de um novo começo. Deste modo, constatamos o cumprimento do texto do profeta Ezequiel Acompanhado agora pelo próprio Deus, esse novo coração é capaz de nova atitude, de aprender a ser um novo homem (Ez 36:25-29).
 
5.3.1 Capaz de ser pacificador
 
Esta nova humanidade é agora capaz de combater os seus excessos, nomeadamente o da auto-valorização. No lugar de nos valorizarmos excessivamente, desvalorizando os outros em consequência disso, é possível agora ver valor naqueles que outrora desprezámos, inclusive até mesmos os nossos inimigos. (Lc 6:20-35) A vingança que nos governava e alimentava a violência dá assim lugar a uma nova atitude de pacificação. Atitude semelhante às dos apóstolos cujo sentimento do desejo de poder sobre os seus inimigos (Lc 9:54) deu lugar ao reconhecimento do seu valor (Act 8:15).
 
5.3.2 Capaz de perdoar
 
O exemplo de Jesus como representante do novo homem (I Cor 15:45), de uma nova lógica na vida: a capacidade de perdoar, abre-nos perante o horizonte de uma nova humanidade (Ef 2:15). Porque perdoar é “o acto de reunir o que se dividiu”, atitudes de perdão promovem o empenho na reedificação dos relacionamentos. Permeando construção da unidade, a prática do perdão reconstrói tanto o homem como sociedade onde vive. E porque o perdão não está obrigado por qualquer lei, perdoar significa restaurar a liberdade. Não só pela oportunidade de começar de novo mas também pelo facto de, libertando-nos do passado, encaminha-nos para uma nova história onde as lembranças do conflito são substituídas pela memória da reconciliação. Acima de tudo a vida de Jesus revela-nos que o perdão não é um sinal de fraqueza mas uma demonstração de amor. Porque amou Jesus perdoou o abandono dos discípulos, o flagelo daqueles que o torturavam a indiferença de quem assistia ao seu sofrimento. Por fim, porque agora somos capazes de perdoar, Jesus lança-nos o maior desafio da nova humanidade: perdoar como ele perdoou. Um convite à possibilidade de transcendência humana porque perdoar como Jesus perdoou torna-nos semelhantes a ele. E isto, começando por orar como ele orou “Pai nosso que estás no céu (…) Perdoa-nos as nossas ofensas como nós perdoamos aos que nos ofenderam.” (Mc 6:9,12)
 
5.3.2 Capaz de servir
Por outro lado, esta nova humanidade é agora também capaz de servir. O ciúme, a ambição desenfreada, o prestígio que outrora promoviam violência, são possíveis de substituir. A máxima de Jesus “aquele que quer ser grande deve servir os outros” (Mc 10:43-44) é agora uma possibilidade prática. A resposta à violência passa por compreender o significado e a necessidade de sermos humildes. Na sociedade contemporânea precisamos de atrevimento para não fazer da humildade sinónimo de fraqueza. São Paulo exorta os crentes de Filipos a serem humildes e que a sua humildade tenha como referencial o exemplo de Jesus (Fp 2:3-11).
 
A Bíblia não nos apresenta uma vida fantástica antes, coloca o homem perante a violência real que existe dentro de si e apresenta-lhe uma proposta para combater a mesma. Esse caminho começa na reconciliação com Deus, a qual permeia a reconciliação pessoal e consequentemente a social. Tão só, tenhamos a coragem suficiente para crermos na mensagem de Cristo (Mc 16:16), aceitarmos o seu perdão e deixarmos que Ele possa moldar-nos de acordo com os seus propósitos – “a paz na terra entre todos os homens a quem ele quer bem” (Lc 2:14). Homens capazes de paz, perdão e serviço.

                    

Simão Daniel Cristóvão Fonseca
Aluno do Mestrado em Ciência das Religiões
Texto publicado em: IMAGO DEI. Revista Teológica do IBP // nº12 // 2º Semestre de 2008
 

 

publicado por Re-ligare às 17:47
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Sábado, 26 de Julho de 2008
ALGUMAS COISAS NÃO ME INTERESSAM MAIS

               

 

 

Quais são os seus olhos?
 

Gostaria de ter acesso a eles.
Gostaria de conhecê-los!
De entender com qual história você me lê...
Com quais olhos você vê a vida.
Eu queria saber,
Isso me interessa.
 
Algumas coisas não me interessam mais.
Deus me interessa!
O amor me interessa.
A vida me interessa.
Você me interessa!
Valorizo a sua história mesmo não a conhecendo.
Mas não gosto mais de algumas coisas que eu até conheço um pouco.
 
Deus não habita em templos.
Não é monopólio de uma religião.
Ninguém o conhece!
Ele é inescrutável!
Mas há aqueles que não pensam assim,
Que acreditam que Deus é como eles entendem.
Que criou um paraíso para eles e seus pares...
E um lugar de tormento para os outros.
Para os que simplesmente pensam de outra forma.
Condenação eterna por pensar de outra forma?
Deus?
 
Deus não é cristão.
Às vezes o acho mais parecido com alguns ateus...
Judeus...
Muçulmanos...
Budistas...
Representantes de uma espiritualidade latino-americana indígena ou...
Originariamente africana...
E também com alguns poucos cristãos... também!
Não o vejo excluído de quaisquer expressões solidárias ou universalmente éticas,
Ou fora de qualquer tentativa, mesmo limitada, daqueles que o buscam.
Eu o vejo em mim.
O vejo no outro.
O vejo em você!
 
Algumas coisas não me interessam mais:
A alienação covarde,
A omissão covarde,
Essas tantas formas de preconceito,
A arrogância,
Indiferença,
Intransigência,
Aspectos protegidos por argumentações teológicas!
Mas não me interessa.
Danem-se tais argumentações teológicas!
 
Algumas coisas não me interessam mais:
Quantos anjos podem dançar ao mesmo tempo na ponta de um alfinete
Se Deus é trino... uno... triuno...
Se Maria é theotokos ou christotokos
Se em relação ao Pai Cristo é homoousios... homoiousios...
Como desceu...
Como subiu...
Se voltará?
Algumas coisas não me interessam mais.
Mas gostei de você.
Você parece ser paciente.
Ainda está até me lendo...
Com olhos que só você tem,
Que só você conhece,
E que, por isso...
Não podem, por mim, ser julgados com critério, com propriedade.
 
Acho que juntos,
Exatamente por causa das nossas diferenças,
Somos o olhar da humanidade!
Um olhar abrangente,
Híbrido como a própria humanidade.
Que como tal, não vê de forma simplista... limitada,
Exatamente por causa das nossas diferenças!
Que não enxerga apenas a partir de um prisma,
Mas de diversos pontos de vista.
Com todas essas maravilhosas diferenças.
Um olhar que nunca pôde se pronunciar,
Sufocado pelas falas particulares, uniformezantes, dogmáticas.
Precisamos ouvir a perspectiva da humanidade,
Mas algumas coisas não me interessam mais.

 

Jeyson Messias Rodrigues
(aluno da Pós-Graduação, com acesso ao Mestrado, em Ciência das Religiões - Fatin / Un. Lusófona)
publicado por Re-ligare às 16:47
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Em busca de uma eclesiologia encarnada

                   

Possivelmente falar de uma encarnação da Igreja pode soar esquisito para muita gente, considerando que nenhum compêndio de teologia sistemática e ou ainda os melhores manuais sobre eclesiologia ensina qualquer coisa nesse sentido.

Muito bem, mesmo correndo o risco de ser mal interpretado ou não ser entendido, ouso dizer que nesse momento é exatamente disso que estou em busca.

Parece estranho que a teologia seja farta quando trata da encarnação do Logos na pessoa de Jesus e que a Igrejas tenha feito (e ainda faz) um esforço enorme para explicar o sentido e a razão dessa encarnação.

Hoje mais do que nunca eu entendo a encarnação. Descobri que ela não é um mistério como afirmaram os Pais Capadócios, na verdade ela é real, palpável e plenamente compreensível. Vejo a encarnação como a mais pura manifestação da graça, do amor e da misericórdia de Deus,(Deus se vez carne e habitou entre nós) lembrando que quando ele encarnou não havia lugar para ele.

Talvez o sentido dessa encarnação seja bem mais simples do que aquilo que emergiu dos longos e desgastantes debates sobre a encarnação que dominou a Igreja por séculos.

Para entender o sentido da encarnação, não precisamos discutir se Jesus tinha duas natureza (diofisismo) ou apenas uma (monofisismo), se era ou não da mesma substância do Pai (homoousios) ou de substância semelhante (homoiousios). Além disso, o debate sobre a encarnação pode prescindir do conhecimento acerca das vontades de Jesus (se era uma ou duas). Se nele coexistiam duas ou apenas uma pessoa (pessona), nem interessa saber acerca da existência de “união hipostática” (hipóstases) entre a humanidade e a divindade de Jesus. Se Maria foi mãe de Deus (teotokos) ou apenas a mãe de Cristo (Cristotokos) A verdade é que ninguém “encarnou” Deus como Jesus o fez, a sua humanidade foi tão completa que nele Deus se tornou conhecido em toda a sua extensão.

Olhando para as escrituras, emerge do texto Paulino que a Igreja é o “Corpo de Cristo”, ora não nos parece paradoxal que este “corpo” esteja “desencarnado”, “espiritualizado” isto é que não exista uma teologia para a encarnação da Igreja?

Estou convencido que uma Igreja que não experimente a encarnação, não pode ser considerada como “Corpo”, uma vez que corpo é a expressão material do ser.

Penso na encarnação da Igreja, como a coisa mais urgente a se buscar na teologia e mais uma vez, relembro que tal encarnação nada tem a ver com a terminologia que embasou o discurso da Igreja sobre a encarnação do verbo.

Penso em uma Igreja encarnada nos moldes daquela encarnação que se manifestou em Jesus de Nazaré, que de forma plena exercitou sua humanidade. Penso em uma Igreja que seja Espiritual, sem deixar de ser humana que olhe para cima sem se esquecer das terra, onde a preocupação com o céu e inferno não seja motivo para esquecer as mazelas que afligem os homens aqui e agora. Que o discurso sobre o “pecado original”não faça a Igreja voltar os seus olhos para o passado, esquecendo que mais cruel que o “pecado de Adão” e o pecado da alienação,  da indiferença para com aqueles que jazem ao nosso lado, nas ruas e até mesmo dentro das nossas comunidades.

Penso em uma Igreja encarnada, onde a adoração a Deus não seja desculpa para manter os cristãos enclausurados entre quatro paredes, inertes e apáticos, cantando como que para fugir da realidade.

Sonho com uma Igreja com carne e osso cujo sangue corra nas veias da sociedade para oxigenar e trazer nova vida. Não como sal dentro do saleiro e como luz embaixo do alqueire.

Que o ser diferente não represente isolamento mais que assim como o “encarnado” seja fermento que misturado á massa promova o seu levedamento e que assim essa “massa” se torne pão, alimento para aquele que perece de fome. Que os problemas sociais de hoje e não apenas as histórias do passado sejam temas para as mensagens de domingo

Lembremos que os “sãos” não necessitam de médicos, (nem de remédios) e que a encarnação do verbo é um sinal de que não se pode servir a Deus a não ser servindo ao próximo.

Penso em uma Igreja encarnada, onde a pureza não seja um sinal de exclusão. Uma Igreja Encarnada pode ser comparada a um hospital para onde os doentes são levados (e onde permanecem) na esperança da restauração. Que o desejo de ser “levitas” e “sacerdotes” não torne a Igreja indiferente ao sofrimento do outro, mas que possamos preferir (contrariando a visão mais conservadora) ser uma Igreja “samaritana” que acolha o alquebrado concedendo-lhe conforto e alento.

Acredito na encarnação da Igreja como um remédio para o distanciamento entre Deus e os homens, que Deus não seja conhecido apenas pela doutrina e pelos sermões pregados acerca do que Deus fez, aprendemos que o “encarnado” pouco falou sobre Deus no entanto, suas ações mostraram a face do pai transfigurada na sua.

 Acredito que Deus não será conhecido por meio de teorias sobre revelação, inspiração, iluminação ou qualquer outra doutrina da teologia sistemática. Confesso que cada vez que busco explicações nesses compêndios, parece que Deus se oculta (de propósito) levando nos a pensar que a verdadeira revelação de Deus se dá na práxis da Igreja.

Uma Igreja Encarnada consegue conjugar santidade e humanidade no mesmo projeto, sem a neurose agostiniana de ver o material como algo essencialmente mal. 

Uma Igreja que se encarna pode sentar-se à mesa com os pecadores sem medo de se contaminar, acolher os pobres, os marginalizados e excluídos, sem que para isso tenha que desprezar os ricos e até mesmo os opressores, eles também são alvos da graça e da misericórdia de Deus.

Não estou dizendo que conheço esta Igreja, embora seja possível que ela já exista como protótipo, mas sonho com o dia em que em algum lugarejo, desse mundo em algum lugar no futuro essa Igreja nasça.

Mas temo que a exemplo do “encarnado de Nazaré” quando esta Igreja chegar não haja lugar para ela.

 Pr. Neilton Azevedo 

 aluno do Mestrado em Ciência das Religiões

 

publicado por Re-ligare às 16:45
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Quinta-feira, 24 de Julho de 2008
Um mundo sem religiões

                  

SEI QUE PARECE ESQUISITO, mas recentemente eu venho pensando nessa possibilidade. Sei também que muitos poderão achar que pensar desta forma é jogar na defesa e fazer gol contra. No entanto depois de algumas reflexões é possível que você também venha a pensar como eu. 
Recentemente me encantei com a leitura do livro Religião e Repressão do teólogo brasileiro Rubem Alves. Confesso que algumas afirmações ali contidas me marcaram profundamente e me fizeram re-pensar algumas verdades que me negava a admitir.
            Quero compartilhar com você algumas dessas conclusões contidas, nesse texto e desafiar você a refletir sobre elas:
Assegura Alves:
“Deus dá nostalgia pelo vôo.
As religiões constroem gaiolas.
Quando o vôo se transforma em gaiolas, isso é idolatria”.
Não pude deixar também de pensar nas palavras de Jesus: “Em vão me adoram ensinado doutrinas que são preceitos de homens” (Mc. 7.7) O que será que ele estava criticando naquele momento? Como reconhecer uma “doutrina” que seja ou não “preceito humano”, Sabemos, porém que a vocação das religiões é construir e preservar. doutrinas
            Diante dessas inquietações, comecei a pensar na possibilidade de um mundo sem religiões.
Obviamente que não estou levantando dúvida sobre a validade da religião como fenômeno, como manifestação de uma espiritualidade sadia. No entanto, não posso negar que as religiões enquanto instituições se transformaram em gaiolas que buscam prender o pássaro da espiritualidade proclamando ainda que ele só pode ser encontrado dentro delas.
Verdade é que a religião tem vocação natural para a proibição, para construir e preservar os tabus, dentro dela não existe lugar para a liberdade e para o vôo. “Prisioneiro, dize-me quem foi que fez essa inquebrantável corrente que te prende? “(pergunta Tagore) Fui eu disse o prisioneiro fui eu que forjei com cuidado esta corrente”.
Toda vez que o “pássaro” se nega a cantar dentro da gaiola e começa a cantar de forma diferente, que o prisioneiro resolve quebrar as correntes, é logo acusado de rebeldia e rotulado de herege, afinal pássaro bom é pássaro adestrado.
            Sempre pensei a religião como algo libertador, mas quando olho os sistemas religiosos que atualmente se multiplicam no mundo, suas múltiplas regras normas e proibições, fico a pensar se às vezes esta pretensa liberdade não se traduz em prisão.
            Em “Os irmãos Karamázovi”, no relato sobre o Grande Inquisidor, Dostoiévski escreveu: “Não há nada mais sedutor aos olhos dos homens do que a liberdade de consciência, mas também não há nada mais terrível”. As correntes, algemas e grilhões forjados pela religião impedem que a experiência religiosa se torne um vôo nostálgico e se transforme em uma caminhada penosa. Deixe de ser a manifestação prazerosa da experiência com o sagrado e se torne a cega observância de regras, normas, dogmas e doutrinas, ou seja: a religião passa a escravizar o homem, alimentando-o com a ilusão de que é melhor a segurança da gaiola que a incerteza da liberdade.
Na verdade, as religiões acreditam ter o monopólio da experiência religiosa, de forma que a única forma de liberdade possível é dentro das gaiolas da religião. Nas palavras de Rubem Alves: “As religiões são instituições que pretendem haver colocado numa gaiola o pássaro encantado”
            Fiquei pensando: Como seria um mundo sem religião? Sem gaiolas nem correntes! Sei muito bem que o mundo não se transformaria em um utópico Éden na terra, porém vislumbro algumas realidades que poderiam mudar.
Creio que um mundo sem religiões, nos proporcionaria a superação do DOGMATISMO, sabemos que a religião se funda no dogma, na certeza ainda que irracional de que determinada verdade não comporta questionamentos, o dogma representa a mordaça da liberdade religiosa, ela mata a liberdade de consciência, e impede o desvelar de novas compreensões sobre o fenômeno religioso.
Além disso, um mundo sem religiões nos conduziriam pelo caminho para vencer a INTOLERÂNCIA religiosa. Sei muito bem que a religião não é a única responsável pelas manifestações de intolerância na sociedade. Não se pode negar, porém que ela ainda representa o principal foco, as pessoas são inflexíveis e impiedosas na defesa das suas convicções religiosas, talvez motivado por uma intenção sincera, os resultados, porém não precisamos citar aqui, a história é testemunha de que em nome de Deus e em defesa das religiões, muito sangue foi derramado, muita lágrima vertida e a dor semeada em abundância.
Acredito ainda que um mundo destituído das religiões enfim nos proporcionasse o fim dos movimentos FUNDAMENTALISTAS religiosos, a exemplo do Taliban, dos Xiitas, Ku Klux Klan, que serviu para garantir o domínio dos protestantes brancos sobre negros, católicos, judeus e asiáticos dos Estados Unidos.
Creio que um mundo sem religiões nos pouparia do radicalismo e do Legalismo que caracteriza o fanatismo religioso capazes de tudo na defesa intransigente da fé.
Talvez tenha sido pensando assim que o teólogo contemporâneo Dietrich Bonhoeffer idealizou um “Cristianismo sem religião” e Karl Barth a falar do “caráter diabólico da religião”
            Penso que um mundo sem religiões, porém, com fraternidade, sem instituições religiosas, porém sensível aos reais problemas que afligem a humanidade, que proporcionasse aos homens uma convivência pacífica e respeitosa, talvez seja um sonho, uma utopia. Más acredite: Eu trocaria todas as religiões do planeta por um mundo assim.
 
Neilton Azevedo 
Mestrando em Ciência das Reigiões.
 

 

publicado por Re-ligare às 16:43
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Separar o trigo do joio?

     

1. Dentro e fora do Parlamento, foram abundantes as conversas sobre o “Estado da Nação” em manifestos, conferências de imprensa, jornais e televisões. Deram para dizer tudo e o seu contrário. Talvez não fosse mau analisar também o estado dessas conversas, num contexto de alguma depressão futebolística. Embora estejam na moda os “observatórios” de tudo e mais alguma coisa, não é prudente acreditar num mirante a partir do qual se pode
ver o certo e o errado, separar o trigo do joio com a utopia de um novo país, sem taras do passado, com um presente limpo e sem ameaças para o futuro.

Quanto à situação mais recente, tive a impressão de que, raramente, foi enquadrada no actual estado do Mundo e da Europa. E, no entanto, como veio a assinalar o Banco de Portugal, numa pequena economia aberta, fortemente dependente do exterior como a portuguesa, o enquadramento internacional é indispensável para compreender até que ponto ela é afectada por choques de escala global.

Quanto ao futuro, seria ridículo pensar que só o governo e o partido que o apoia se movem num horizonte eleitoral. Os partidos da oposição, associações, grupos de pressão e comentadores sentir-se-iam ofendidos se fossem considerados habitantes de outro planeta.

À pequena e à grande escala, vivemos sempre entre desejos, promessas, decepções e recomeços, não muito longe das palavras de Qohélet, filho de David, rei de Israel: «ilusão das ilusões: tudo é ilusão... nada há de novo debaixo do sol!» (Ecl 1, 2. 9).

É evidente que as constantes descobertas científicas e as inovações tecnológicas do nosso tempo parecem contradizê-las. No entanto, também se repete que as utopias dos séculos XIX e XX se eclipsaram e as inovações tecnológicas servem mais a banalização da vida e as ameaças bélicas do que a felicidade humana. Já é de forma envergonhada que se pergunta: afinal, o que ficou do Maio de 68?

De qualquer modo, não é por falta de progresso científico e tecnológico que a recente reunião do G8 não resolveu nenhum dos problemas actuais nem afastou os perigos de novos conflitos. Aliás, sem uma ética mundial para aeconomia e para a política, o diálogo de civilizações e religiões resvala, facilmente, para a conversa fiada.

2. Não pretendo com isto desvalorizar a importância do diálogo intercultural e inter-religioso e do debate no interior de cada uma das culturas e religiões. Apesar da sua lentidão e, por vezes, da sua aparente inutilidade, não podemos descartar as possibilidades de “milagre”. Os reis Juan Carlos de Espanha e Abdullah bin Aziz da Arábia Saudita – considerado o país mais fundamentalista sob o ponto de vista religioso e avesso a todo o diálogo – patrocinaram e acabam de realizar, em Madrid, a Conferência Internacional para o Diálogo (16 a 18 de Julho 2008). Este encontro, entre muçulmanos, cristãos e judeus, abriu-se a vários outros credos.

O rei Juan Carlos, na sua abertura, expressou o desejo de que esta Conferência sirva para chegar a «um mundo que acabe para sempre com a inaceitável barbárie terrorista, que lute contra a fome, a doença e a pobreza, que respeite os direitos do ser humano e que promova a defesa do meio ambiente». Pode parecer retórica de circunstância, mas o secretário da
Liga do Mundo Islâmico, Al Turki, não se esqueceu de avisar: «que esta Conferência não seja como as outras, estéreis, mas que se traduza em projectos operativos, materiais e que seja para prosseguir». Veremos.

3. A vontade de «separar o trigo do joio», de fazer limpezas étnicas, culturais e religiosas, de separar os maus dos bons, de criar mundos homogéneos, sem dissidentes, é muito antiga.

A expressão «separar o trigo do joio» vem da agricultura. O joio é uma planta nociva que se desenvolve com frequência nas searas, prejudicando o seu desenvolvimento. Daí a necessidade de separar o trigo do joio. A partir deste pressuposto de observação corrente, Jesus constrói uma parábola – proclamada na Missa deste Domingo – para que não sejam tiradas conclusões apressadas acerca do insucesso parcial da pregação do Reino de Deus e da mistura de bons e maus nas comunidades cristãs. A classificação de bons e
maus depende dos juízos intolerantes que uns fazem sobre os outros. O próprio Jesus foi acusado, precisamente, de conviver e de aceitar no seu convívio os classificados como pecadores, sinal de que andava feito com os inimigos da Lei de Deus, com o diabo (Mt 12, 22-24).

Ainda hoje, continua a discussão do que a Igreja católica pode ou não admitir, do que pode ou não admitir a Igreja ortodoxa, do que pode ou não admitir a Igreja anglicana, luterana ou calvinista, do que cada uma pode ou não admitir para acolher as outras na sua comunhão.

O sucesso da expressão «separar o trigo do joio» é a vontade diabólica de separar, de eliminar o outro. Não apressar a separação do trigo do joio não é dizer que vale tudo. É dar tempo ao tempo. A intolerância, em nome do melhor, provoca o pior.

Quando vemos as outras comunidades, os outros povos, as outras ideologias, as outras religiões como o mundo inimigo, estamos a preparar a guerra, a impedir a paz.
               

Frei Bento Domingues, O.P.

(1º Director da Lic. em Ciência das Religiões)

        

Artigo publicado no diário Público a 20 de Julho de 2008.


 

 

publicado por Re-ligare às 10:37
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Terça-feira, 22 de Julho de 2008
Esperança

 

No livro «A Violência do Mundo», Edgar Morin utiliza um termo curioso para falar do estado actual do mundo: desesperança.
 
E aponta dois caminhos, «dois princípios de esperança na desesperança». O primeiro é o princípio da metamorfose. Assim como acontece com a lagarta que se transforma numa borboleta, assim também este complexo sistema de vida tem de criar um meta-sistema. O problema que está em jogo é o problema das metamorfoses: como passamos de uma forma para a outra? Como chegaremos a esse meta-sistema, recriado e transformado a partir do património existente? Como construímos o diferente a partir do mesmo? Não dá resposta.
 
Depois aponta o seu segundo caminho: a possibilidade da mudança a partir da possibilidade do improvável entrar na História. E descreve como a predição de Hitler, isto é, de que o seu império duraria mil anos, veio a ser destruída por causa de alguns imponderáveis – factores improváveis que entraram na História e mudaram o cenário por inteiro. E o desespero é tanto que chega mesmo a aconselhar-nos a que «procuremos ter um pouco de fé no improvável».
 
Ficamos com pouco. Primeiro ficamos a saber que necessitamos de um meta-sistema mas não sabemos como fazê-lo nascer. Estamos como estava o poeta inglês Matthew Arnold (1822-1888): «entre dois mundos, um já morto e outro sem força para nascer».
 
Depois, ficamos a saber que temos de ter fé…no improvável! Isto é, temos de esperar que uma certa desordem futura interfira na História e mude esta desordem presente. Este caminho, apontado por Morin, não chega para construir um sistema de esperança. Temo, até, que se seja causador de maior desesperança; mais, de desespero.
 
Se o existencialismo ateu nos oferece pouco, a religião também não oferece muito mais. O que ela faz é oferecer-nos sistemas de «esperança adiada», uma esperança que vai fazendo o coração adoecer porque não se realiza na concretude do presente. Provérbios 13:12 diz tal e qual: «a esperança adiada faz adoecer o coração»! E adoece o coração porque promete o incerto, o impreciso, o inexacto.
 
Mas não podemos ficar prisioneiros nem da «fé no improvável» nem da «esperança adiada». Tem de haver outro caminho: o grande desafio não é esperar por um outro mundo: é construir um mundo-outro. E temos de assumir que teremos de ser, cada um de nós e em cada momento, esses artesãos da esperança através da forma como vivemos, convivemos e tecemos a vida. Mais do que ter esperança, importa ser esperança.
 
Luís Melancia

 

publicado por Re-ligare às 13:10
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Cuidado com os cães!

                                                  
É fundamental não fazer do Parque Bensaúde a retrete dos cães.
Desgraçadamente, não seria caso único


1.Não se trata de uma metáfora paulina (Fl 3, 2) nem de uma moradia com tabuleta de alerta ameaçadora. O assunto é outro. Vivi em Lisboa ao lado de um belo parque, intermitentemente aberto e fechado ao público, desde 2003 - mais tempo fechado do que aberto - situado junto à Rua dos Soeiros, entre o Estádio do Benfica e a Estrada da Luz, com acesso pela Rua Francisco Baía. Segundo algumas referências históricas, teria pertencido à antiga Quinta de Santo António (século XVII) dos franciscanos. A família Bensaúde adquiriu a
quinta e, em 1980, vendeu ao Estado nove hectares. Em 1997, o Estado cedeu à Câmara Municipal de Lisboa, por um período de trinta anos, a área de jardim e mata, constituída por um conjunto de plataformas e escadarias que culminam no pavilhão (miradouro), por edifícios de apoio e por um conjunto de vegetação, salientando-se uma importante alameda de plátanos e o maior sobreiro identificado em Lisboa.


Dada a manifesta carência de um espaço desta natureza na área, a CML reabriu ao público, este ano, no dia 1 de Julho, o Parque Bensaúde, com a presença do seu presidente, António Costa, e do vereador dos Espaços Verdes, José Sá Fernandes.
Foram efectuadas acções de limpeza e manutenção, criadas as estruturas mínimas de apoio e implementadas algumas medidas de segurança, para que os utentes possam usufruir, já este Verão, deste magnífico espaço. Somos informados que está em elaboração o Projecto de Recuperação e Requalificação de todo o parque, com uma oferta diversificada de actividades. À entrada, encontra-se também o regulamento para o seu uso desde as 9h00 às 20h00. Está proibida a entrada a cães sem trela. Conhecendo a situação lamentável de algumas ruas desta localidade, essa proibição é, no entanto, muito insuficiente. Várias dessas ruas já foram roubadas às pessoas. Foram transformadas em retretes de cães com dono e trela.

                 
2. Não quero ter nada contra os cães. É, aliás, consensual que o cão pode tornar-se o melhor amigo de novos e velhos. Por alguma razão é o mais antigo animal domesticado. Mas há cães e cães, mais de 400 raças e cães sem raça nenhuma. Para os mais privilegiados, abundam escolas, clínicas, cabeleireiros especializados, hotéis, lojas variadas e cemitérios. O cão não está vocacionado para ser apenas um animal de luxo. É dotado de excelente olfacto e audição, é corredor veloz, bom caçador, come de tudo, tem boa capacidade de aprendizagem, é dócil e obediente. Pode ser treinado para realizar muitas tarefas: caçar, pastorear rebanhos, vigiar propriedades e proteger pessoas, farejar as coisas mais diversas, resgatar afogados ou soterrados, guiar cegos, puxar pequenos trenós. Pode ser uma excelente e afectuosa companhia, sobretudo para quem vive só. Nada mais fiel ao seu dono e não se encontra quem se lhe possa comparar em docilidade e prontidão para cumprir ordens sem resmungar. Vi, desde pequeno, famílias inteiras de luto pesado pela morte de um cão. O romance de Michel Houellebecq, La Possibilité d'une île, premiado em 2007, sobre os neo-humanos, começa com a pergunta: "Quem, dentre vós, merece a vida eterna"? No final, depois de todas as deambulações, descobre que só o seu cão a merecia e morreu. Não admira, por isso, que os cães tenham passado para a ficção, a literatura, o cinema, a banda desenhada e a mitologia. Argos, o cão de Odisseu, da Odisseia de Homero, foi o único a reconhecer o dono, quando esse voltou para casa, depois de ter ficado vinte anos fora, e morreu a seguir.

Seria complicado trazer, para aqui, o estudo do lugar do cão na história comparada das religiões. Não resisto, porém, a evocar um caso raro que encontrei na Colômbia. Andava um dominicano a restaurar um antigo convento, situado no cruzamento de caminhos  abandonados - que teve muita importância na evangelização, no século XVII - e destinado, agora, a uma casa de espiritualidade. Como vivia só, resolveu começar o futuro com uma comunidade de animais: ovelhas, gatos, cães, peixes, etc. e, a cada um, deu o nome de um santo ou santa. Os cães estavam sempre ao lado do altar, as ovelhas e os gatos estavam à frente dos poucos fiéis que aí acudiam. De manhã, antes do pequeno-almoço, o dominicano tinha de dar os bons dias a todos. À noite, nenhum ia descansar sem se despedir do frade.
3. Dir-se-á para quê tanta conversa? E com razão. No primeiro ponto, já disse o essencial. A reabertura do Parque Bensaúde é uma bênção para a saúde desta zona. Defendo que, no regulamento, enquanto não houver um serviço de higiene para animais, deve constar a proibição da entrada de cães, com trela ou sem trela, com açaime ou sem ele, pois não é no focinho que está todo o perigo. É fundamental não fazer do Parque Bensaúde a retrete dos cães.
Desgraçadamente, não seria caso único. Muitos se queixam da situação de outros parques, jardins e ruas. Parece que há legislação suficiente para resolver o problema. Mas, como diz um vizinho, o problema não são os cães e as suas necessidades. O problema é haver gente com um comportamento abaixo de cão. 

Frei Bento Domingues, O.P.

(1º Director da Lic. em Ciência das Religiões)

        

Artigo publicado no diário Público a 13 de Julho de 2008.

publicado por Re-ligare às 10:31
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Domingo, 20 de Julho de 2008
Ano paulino, ano de convocatórias

                 

                    
1. Num momento em que muitos têm a sensação de que a Igreja pensa que avança, recuando, a promessa de um ano inteiro dedicado à personalidade e obra de S. Paulo, só por si, não é boa nem má: tanto pode servir para nos confrontarmos com reformas inadiáveis, como para saturar o mercado com a reedição de propostas gastas que já não levam a lado nenhum.

Para já, importa não desligar o Ano Paulino da vontade manifestada por Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, de convocar a arte contemporânea, que anda longe dos grandes temas, símbolos e narrativas, para exprimir a profundidade da fé cristã. Para esse efeito, pretende chamar cinco ou seis grandes artistas que incarnem, de forma exemplar, esse desígnio. Na arquitectura, na construção de templos, o diálogo já começou. Refere o arquitecto português, Siza Vieira, o japonês Tadao Ando, o italiano Renzo Piano, o suíço Máario Botta, o norte-americano Richard Meier, judeu que construiu a bela igreja do jubileu, em Roma. Esse diálogo deve continuar também com a arte e a música contemporâneas, para que se abandone o divórcio que há entre arte, cultura e a expressão religiosa, fechada em si mesma. Este projecto não se destina a aumentar o chamado
património cultural da Igreja, mas a superar a situação actual, de desleixo e de mediocridade, que impede a irrupção criadora do Espírito.

Essa abertura estética não deve servir para esquecer as dificuldades criadas, aos católicos, em nome de uma moral convencional. Anselmo Borges foi muito oportuno ao apresentar as “Conversas Nocturnas em Jerusalém”, entre o padre G. Sporschill e o cardeal Carlo Martini, antigo arcebispo de Milão (DN, 20/06/2008). Reflectem preocupações de ordem ética, sacramental e disciplinar, internas à Igreja, nas quais muitos se reconhecem e outros tomarão como uma desgraça que nem a idade pode desculpar, esquecendo-se de que o cardeal não é mais idoso do que Bento XVI. É possível que alguns lamentem que Carlo Martini não tenha lutado por essas perspectivas, quando era bispo efectivo de uma das maiores dioceses do mundo. E, quando sugeriu a necessidade de um concílio para debater algumas destas questões, foi pena que não tivesse encontrado aliados para essa urgência. No entanto, mais vale que o tenha feito agora do que em memórias póstumas.

2. O cardeal Martini retirou-se para Jerusalém: “Jerusalém é a minha pátria. Antes da pátria eterna”. S. Paulo perdeu essa devoção numa viagem sem regresso que, segundo os Actos dos Apóstolos, mudou o rumo da sua vida: “respirando ainda ameaças e morticínios contra os discípulos do Senhor, foi procurar o Sumo Sacerdote e pediu-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, a fim de que, se encontrasse alguns adeptos do Caminho, homens ou mulheres, ele os trouxesse agrilhoados para Jerusalém” (Act 9, 1-2). Nessa viagem, não prendeu ninguém. Foi ele o libertado da ideologia política e religiosa que
matava os profetas.

A continuação desta passagem dos Actos descreve a conversão de Paulo. Não resultou de uma crise de identidade religiosa: “circuncidado ao oitavo dia, sou da raça de Israel, da tribo de Benjamim, um hebreu descendente de hebreus; no que toca à Lei, fui fariseu; no que toca ao zelo, fui perseguidor da Igreja; no que toca à justiça – a que se procura na Lei – irrepreensível. Mas, tudo quanto para mim era ganho, isso mesmo considerei perda por causa de Cristo. Sim, considero que tudo isso foi mesmo uma perda, por causa da maravilha que é o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor: por causa dele, tudo perdi e considero esterco a fim de ganhar a Cristo e nele ser achado, não com a minha própria justiça, a que vem da Lei, mas com a que vem pela fé em Cristo, a justiça que vem de Deus e que se apoia na fé. Assim posso conhecê-lo a Ele, na força da sua ressurreição e na comunhão com os seus sofrimentos, conformando-me com Ele na morte, para ver se atinjo a ressurreição de entre os mortos” (1).

3. No ardor das polémicas a que o obrigaram, Paulo moveu-se no teclado da sua cultura greco-romana e no da sua esmerada formação rabínica. Ao tentar exprimir o terremoto que abalou todas as suas seguranças, até parece querer dinamitar a razão e a religião: “Os judeus pedem sinais e os gregos andam à busca da sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado que, para os judeus, é escândalo, para os gentios, é loucura, mas, para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Cor 1, 22-25).

Essas sabedorias, ao pretenderem ser a medida da razão e essas religiões, apresentando-se como os únicos caminhos de Deus, criavam a ilusão de uma máquina que controlava o presente e o futuro. Em Damasco, Paulo encontrou-se com o absolutamente imprevisível. Dir-se-á que as suas convicções, acerca da morte/ressurreição, exigem um salto abissal, sem rede. Não me admira que muitos se resignem a um destino de estrume.

(1) Carta aos Filipenses 3, 2-11; cf. Act 9; 22; 26; Gal 1, 11ss e 2; 1Cor
15, 8-11; 2Cor 10 - 12.


Frei Bento Domingues

(1º Director da Lic. em Ciência das Religiões)

 

 

artigo publicado no jornal Público de 6 de Julho.

publicado por Re-ligare às 17:22
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