Sexta-feira, 29 de Janeiro de 2010
SIC ET NON
O pensamento filosófico medieval é pontilhado por várias figuras que se tornaram pontos de luz num firmamento de relativo breu. E dizemos que é um breu relativo porque, de resto, não existe iluminação perfeita nem treva absoluta. Vivemos, desde sempre, num permanente estado de lusco-fusco.
Uma dessas figuras estrelares do pensamento filosófico do século XII foi Pedro Abelardo, ou Abelardo de Paris. Filósofo, teólogo, as suas aulas eram sempre muito disputadas pelos alunos desejosos de ouvir a claridade, a luminosidade do seu pensamento. O que nem sempre era bem recebido pelos seus pares…
Abelardo mostrava-se entusiasmado com o pensamento dialéctico, descobrindo afirmações e negações em todas as coisas aprendidas e ensinadas naquele tempo. A sua famosa obra SIC ET NON (Sim e Não), era uma tentativa de harmonizar as diferenças que entretanto surgiam na teologia medieval. Mas essa sua abordagem dialéctica nem sempre surtia o efeito desejado porque, por vezes, os NÃO tornavam-se presenças incómodas na organização do pensamento teológico fundamentalista e dogmático da Idade Média. O NÃO era proibido; isto é, era proibido questionar ou resistir - quanto mais negar... - o SIM infalível e inquestionável que a autoridade religiosa pronunciava.
SIC ET NON - SIM E NÃO! E assim se vai vivendo a vida. Temos é de aceitar que, quer queiramos quer não, muitos dos nossos SIM estão permeados por muitos NÃO. Quantas certezas indiscutíveis, quantas crenças irrefutáveis, quantas convicções inabaláveis, quantas esperanças firmadas – quantos dos nossos SIM - estão afinal acompanhados por alguns NÃO que desorganizam a nossa vida interior, põem em causa uma certa ordem, ameaçam uma certa estabilidade e que, ainda por cima, teimamos em não querer reconhecer!
A ver se aprendemos: Abelardo viveu para nos dizer que a vida é dialéctica; que a vida é constituída de forma inelutável, iniludível, sempre, por SIM e NÃO.
Luís Melancia
Docente na Lic. em CR
Quinta-feira, 21 de Janeiro de 2010
Andamos sempre a cair...
Cheguei ontem a Brasília.
Quando o avião estava a aterrar, dei comigo a pensar: qual é a semelhança entre um avião que se despenha violentamente contra o solo e um avião que aterra suavemente numa pista? Sim, há uma semelhança: é que ambos estão em queda! A diferença é que o primeiro está em queda descontrolada e o segundo em queda controlada.
Na «Gaia Ciência», Nietzsche descreve o niilismo desta forma: «Para onde vamos nós próprios? Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados?».
A ideia de queda, nas suas múltiplas dimensões, marca tragicamente a vida do homem. Mas a ideia de queda não é um conceito aplicado só à vida no plano pessoal; é também no plano cósmico. O mito de criação babilónico, por exemplo, apresenta-nos a criação a partir de um quadro de profunda violência e desordem. É o corpo dilacerado da deusa que dá origem ao universo e do seu sangue surgem as constelações. O mito judaico da criação também apresenta a formação dos mundos a partir de um estado de queda: é a criação que surge a partir da vacuidade e do caos disforme.
É um facto: somos habitados – tragicamente habitados – por um conceito de queda. E o facto de sermos seres em constante queda, de estarmos, como dizia Nietzsche, «incessantemente a cair», torna afinal o homem um ser decadente! O segredo, contudo, está em ter uma queda controlada para minimizar os danos e optimizar, afinal, a vida.
Andamos sempre a cair; mas, por incrível que pareça, a vida também se forja, também se ergue, também se vive a partir de quedas.
Luís Melancia
Quinta-feira, 7 de Janeiro de 2010
HAJA LUZ...MAS NÃO MUITA!
No discurso «Dos Sublimes», Nietzsche faz Zaratustra dizer que há homens que estiveram sentados à sombra durante tanto tempo, que as suas faces empalideceram.
De facto, há homens que, sem darem por isso, inflaram tanto que já só vivem à sombra de si próprios. Tudo o que dizem é tudo o que há para dizer; tudo o que sabem é tudo o que se pode saber. Eles são a medida da luz que é permitida àqueles que preguiçosamente se sentam à sua sombra e que meneiam a cabeça obedientemente. Coitados, vivem deslumbrados com tantos tons…mas de cinzento. Para esses, acabou a procura porque não há caminho fora da sombra dos homens inflados; para além da sua sombra só há o abismo.
Eles dão o tom – a todas as outras harmonias chamam dissonâncias, e dizem que ferem os ouvidos.
E ai dos outros homens que ousarem ter luz própria ou sair da sombra dos homens inflados. «Que uma luz maldita faça cegar todos os que deixaram a minha sombra», cismam com olhos semi-cerrados e sussurram entre dentes.
Homens inflados, criadores de sombras, formam comunidades de homens macilentos, pálidos e cadavéricos; homens fracos, de pensamento vazio (será que pensam…?), submissos, ensombrados por uma sombra imponente, grandiosa, que os esmaga.
«Haja luz», mas desde que não invada, disperse e dissipe as sombras dos homens inflados, porque, como dizia o ditador, «a muita luz cega o povo». É proibido buracos na sombra, não vá entrar a luz e saírem os homens macilentos.
E há sempre quem se habitue à sombra; há sempre quem tenha medo da noite que antecede o dia; há sempre quem não queira ver o sol…
Luís Melancia
Docente na Lic. de C. Religiões