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Domingo, 14 de Fevereiro de 2010
Disgeusia

 

D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, a quem foi recentemente atribuído o Prémio Pessoa, dizia na sua homilia deste domingo que «vamos sabendo como quem saboreia».

Fantástico! «Vamos sabendo» porque o sabor do saber não está, de todo, fixado. E precisamos de uma sensibilidade apurada, afinada, para sentir os cambiantes do saber. Karl Popper dizia que o saber é provisório. É isso mesmo: o saber é dinâmico, muda, altera-se, chega a mudar de sabor.

É possível uma pessoa habituar-se de tal forma ao sabor de um saber, que chega ao ponto de perder a sensibilidade – e pior ainda, o interesse – para saborear a riqueza de outros saberes! Será porventura possível desenvolver uma vida equilibrada, saudável, na pobreza nutricional de um sabor único, de um saber único?

Leio que a disgeusia, a ausência do sentido do paladar, pode ser causada por qualquer coisa que interrompa a transferência dos estímulos de sabor para o cérebro, ou por condições que afectam a maneira pela qual o cérebro interpreta os estímulos. E acho que é mesmo por aí: o problema começa quando o saber que alguém saboreia de forma ritual, dogmática, sentenciosa, ao longo dos anos, pela vida afora, deixa de ser interpretado pelo cérebro…

Mas D. Manuel Clemente integra, na sua frase, outra nuance: é preciso muita sensibilidade para saborear, para desfrutar o prazer de ir sabendo, como quem fecha os olhos para apreciar o ingrediente de sabor suave do prato, como quem degusta o aroma e o sabor do cálice, como quem é arrebatado pelo rendilhado das ideias, pela filigrana dos saberes...

 

 Luís Melancia

Docente na Lic. em CR

publicado por Re-ligare às 19:06
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Domingo, 7 de Fevereiro de 2010
UMA INESGOTÁVEL ESCOLA DE ESPIRITUALIDADE, de Frei Bento Domingues, O.P.

 

1.As edições Paulinas abriram uma colecção designada “Sabedoria Cristã”, permitindo ao cristianismo respirar a dois pulmões, como desejava João Paulo II: o da Igreja do Oriente e o da Igreja do Ocidente. Já saíram várias obras essenciais. A quarta é constituída pelos “Tratados e Sermões” de Mestre Eckhart (1260-1328), com prefácio do Prof. Paulo Borges e introdução de Fr. José Luís de Almeida Monteiro, o.p.. Com outro volume de “Introdução a Mestre Eckhart”, de Michael Demkovich, procura-se recuperar, ainda que tardiamente, a voz deste grande místico ignorado em Portugal.
O grande especialista do pensamento medieval, Alain De Libera (1) – que vou seguir neste texto – sustenta que a filosofia alemã, nos séculos XIII e XIV, estava inteiramente concentrada na Ordem dos Pregadores. Alberto Magno (1280) era alemão por nascimento e carreira. As suas ideias, porém, eram parisienses. Os filósofos alemães eram discípulos de Alberto Magno, formados por ele, em Colónia, no Studium Dominicano ou dependentes das suas teses.
O mais famoso dos discípulos foi Mestre Eckhart, filósofo, teólogo, místico e dotado de grande capacidade prática. Foi prior, provincial, vigário geral, professor na Sorbonne de Paris e em Colónia. É considerado o maior místico da Idade Média. A sua influência atravessou os séculos e as culturas, uma ponte entre o Ocidente e o Oriente. M. Heidegger aludia ao “velho mestre, de quem aprendemos a ler e a viver”. Continua a marcar a sua presença nas investigações feministas, sufistas e budistas, nos seguidores da New Age e, com redobrado fascínio, entre escritores cristãos de várias tendências.
2. Este místico é também aclamado como “pai da especulação alemã”. Foi condenado a 27 de Março de 1329 por um dos Papas de Avinhão, João XXII. Apesar de todas as censuras e reprovações, ler hoje Mestre Eckhart é continuar a beber numa fonte de água viva. É, também, uma escola, pois Eckhart teve discípulos imediatos de grande envergadura: Henrique Suso e João Tauler. Com ele, legaram ao cristianismo uma das suas mais altas e exigentes expressões, uma teologia contemplativa e prática, cujas palavras-chave são a “deificação” e o “desprendimento”, marcas da mística renana.
Durante uns sessenta anos, no século XIV, no vale do Reno, na região de Colónia e de Estrasburgo, viveu, pregou, escreveu e meditou uma extraordinária geração de homens chamados místicos renanos. Pertenciam os três – Eckhart, Suso e Tauler – à Ordem Dominicana. Eram intelectuais: Eckhart era o terceiro alemão com o título de Mestre em Teologia, pela universidade de Paris, a maior distinção intelectual que se podia imaginar naquela época. Os outros eram seus alunos e discípulos. Entre 1300 e 1360, esses três irmãos mendicantes transformaram o modo de pensar e de viver o cristianismo, inventando um tipo de intelectual que o mundo medieval não tinha conhecido até então: o de “mestre de leitura” que fosse, também, e em primeiro lugar, “mestre de vida”.
3. Na Idade Média, sempre houve espirituais e sábios. Na época das Universidades – a partir dos anos 1200 – existiam intelectuais, profissionais do pensamento, numa palavra, “clérigos”. Com Eckhart, Suso e Tauler surge outra realidade. Pela primeira vez, teólogos profissionais pregavam, ensinavam e orientavam, falando na língua dos leigos, perante auditórios de não profissionais que ignoravam tanto a filosofia como a teologia sistemática. Popularizaram, ou melhor dito, desprofissionalizaram a sabedoria cristã. Dirigiam-se ao mundo dos “simples”.
Este novo destinatário do saber e da fé em busca de inteligência não era fruto de uma iniciativa pessoal, fazia parte da sua missão de irmãos pregadores. Tratava-se, sobretudo numa época de intensa vida religiosa, de conduzir um imenso mundo de mulheres, monjas ou beguinas, pelos caminhos da verdadeira doutrina. De facto, a espiritualidade feminina era, na altura, tão florescente que inquietava o magistério. A singularidade dos três pregadores consistiu em ter cumprido a sua função, colocando-se na escola do seu auditório, aprendendo com o seu contacto e aceitando e vivendo todas as suas consequências.
Era duro e sofredor o mundo em que viveram: o papado estava em guerra ideológica com o império; a peste começava a assolar a Alemanha; queimavam-se os livros e, por vezes, os seus autores. Era uma época de censura e de condenações. No entanto, era também uma época de discussões e de pôr em causa velhos saberes. Tempo de G. Occam e do nominalismo, do florescimento da lógica e da nova física. Tempo, também, de espirituais, da contestação no seio da Igreja, da reivindicação de uma forma de vida evangélica inspirada na pobreza dos primeiros cristãos, de Cristo e dos apóstolos.
A posteridade tão diversificada, por vezes contraditória, desta escola – no campo da filosofia, da teologia, da espiritualidade e da mística – já começou a ser estudada por Alain De Libera, com muitas outras colaborações (2). Quais serão, porém, as razões da atracção que continua a exercer em novos estilos de espiritualidade e de teologia, no Oriente e no Ocidente?
 
(1)       Alain De Libera, A Filosofia Medieval, Loyola, São Paulo, 1998, p.397. (2) Alain De Libera, Eckhart, Suso, Tauler, ou la Divinisation de l'homme, Bayard, Paris, 1996; Id., Maître Eckhart et la Mystique rhénane, Cerf, Paris, 1999.
 
Fonte: PÚBLICO, 2010. 02. 07
publicado por Re-ligare às 12:40
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SUMA TEOLÓGICA DE FOLHAS SUBSTITUÍVEIS, de Frei Bento Domingues,O.P.

 

31. Janeiro. 2010
1. Celebrou-se, na Igreja Católica, no passado dia 28, a festa de S. Tomás de Aquino (1225-1274). Antes, era celebrada no dia 7 de Março e, em muitos lugares, sobretudo nas escolas católicas, com pompa e circunstância.
Umberto Eco, no sétimo centenário da sua morte, escreveu um divertido elogio deste santo e condenado teólogo que, num contexto de grande turbulência, “em quarenta anos, mudou toda a política cultural do mundo cristão”. Lamentou que este incendiário, com o tempo, tenha sido transformado em bombeiro. Pergunta U. Eco: o que faria este teólogo se vivesse hoje? Os seus comentários já não seriam sobre Aristóteles e “aperceber-se-ia que não podia nem devia elaborar um sistema definitivo, como uma arquitectura acabada, mas uma espécie de sistema móvel, uma Suma de folhas substituíveis, porque na sua enciclopédia das ciências entraria a noção de provisoriedade histórica. Não sei dizer se ainda seria cristão. Julgo que sim. Sei, de certeza, que participaria nas suas comemorações apenas para nos recordar que não se trata de decidir como usar ainda aquilo que ele pensou, mas de pensar outra coisa. Ou, no máximo, de aprender com ele como fazer para pensar com limpeza, como um homem do nosso tempo. Depois disso, não queria estar na sua pele”.
De facto, nos finais do século XIX, Tomás de Aquino foi proposto como a resposta católica a todos os problemas. Os que seguiram por esse caminho tornaram-se repetidores estéreis e esterilizaram o campo teológico. Verdadeiramente fiéis a S. Tomás, foram aqueles que, tendo estudado a sua obra em profundidade, situando-a na história e assumindo, com discernimento, a problemática de cada época, incarnaram a sua criatividade como, por exemplo, no século XX, Joseph Lagrange, Dominique Chenu, K. Rahner, Y. Congar, E. Schillebeeckx, etc.
2. É sabido que Tomás de Aquino – autor de uma obra imensa, de vários géneros literários – não acabou a construção da Suma Teológica. Por uma razão estranha, a terceira parte ficou a meio, quando elaborava o tratado dos Sacramentos. Conta um seu confrade que, a partir do início de Dezembro de 1273, depois de ter celebrado Missa, abandonou a escrita e respondeu a quem lhe perguntava porquê: “Não posso mais. Depois do que vi, parece-me palha tudo quanto escrevi”. A “iluminação” eclipsou o interesse pelos tecidos da razão.
Os êxtases contemplativos não eram coisa rara na sua vida, mas a partir daquela experiência mística, ninguém arrancou mais nada àquele investigador incansável, com doze secretários à sua disposição, ditando a três ao mesmo tempo. Não era por cansaço intelectual, tanto mais que, no começo do ano seguinte, pôs-se a caminho para o Concílio que Gregório X convocou, para Maio de 1274, em Lião, tendo em vista um entendimento com os gregos. Na viagem, sofreu um acidente físico grave. Ainda ditou uma resposta breve e luminosa ao Abade do Monte Cassino que o interrogou acerca das relações entre conhecimento divino e contingência. Tentou retomar a viagem, mas teve de recolher ao mosteiro de Fossanova, onde morreu a 7 de Março de 1274.
3. Esquecemos que Tomás de Aquino interrompeu uma obra de grande sucesso que ele próprio concebeu, por razões pedagógicas, como guia de principiantes no estudo da teologia, dada a dispersão em que esta se encontrava, no século XIII, produzindo nos estudantes confusão e fastio. Muitos dos seus utilizadores esqueceram, no entanto, que se tratava de um guião de pesquisa, não de uma resposta prévia a tudo e para sempre.
Observei, muitas vezes, que mesmo aqueles que destacaram a influência mística do Pseudo-Dionísio sobre Tomás de Aquino, não a tomavam verdadeiramente a sério, isto é, como informando toda a sua construção racional. Esse teólogo bizantino do século V ou começos do século VI, que se fez passar por discípulo de S. Paulo, marcou a teologia de Tomás até à raiz. A teologia apofática (do gr. apofatikos, não afirmativa) – também designada por “teologia negativa” – faz parte da própria epistemologia da construção da Suma, aliás, como do conjunto da sua obra teológica. Não se trata de uma teologia do silêncio, sem afirmações positivas, mas da consciência de que todas as afirmações brotam de um fundo sem fundo do mistério que Deus é. A fé como adesão da pessoa não tem como terminal as afirmações do Credo. Estas são, apenas, mediações para conduzir o crente para o Deus misterioso, que não cabe em nenhum conceito, em nenhuma imagem, em nenhuma metáfora. A “teologia negativa” afecta todas as afirmações da fé para que nenhuma delas dê a ideia de que temos a posse de Deus. Pelo contrário, somos nós que vivemos, nos movemos e existimos n’Aquele que excede, infinitamente, todo o conhecimento e todo o amor.
Quando não se tem isto em conta, de forma consciente, corre-se o perigo de usar a palavra Deus e as expressões, plano de Deus, vontade de Deus, presença de Deus, acção de Deus, lei de Deus, etc., para manipular os crentes. A “teologia negativa” tem a função positiva de não permitir que os pregadores, os catequistas, os teólogos e a hierarquia falem de Deus com leviandade (1).
 
(1) Para conhecer a vida, a obra e a espiritualidade de S. Tomás de Aquino, recomendo Jean-Pierre Torrel, o.p., Iniciação a Santo Tomás de Aquino. Sua pessoa e obra, 1999; Santo Tomás de Aquino. Mestre espiritual, 2008, Ed. Loyola, São Paulo.
 
Fonte: PÚBLICO, 2010. 01. 31
publicado por Re-ligare às 12:37
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CIÊNCIA E ESPIRITUALIDADE: UM NOVO DIÁLOGO?, de Frei Bento Domingues, O.P.

 

1.Já passaram quatro séculos depois da condenação de Galileu. O debate público sobre o tema das relações entre ciência e religião continua, embora, polarizado por dois extremos. De um lado, o delírio criacionista, apostado em negar determinadas aquisições científicas em nome de uma leitura fundamentalista da Bíblia. Do outro, a repercussão mediática de certos cientistas como, por exemplo, Richard Dawkins, que julgam poder provar a não-existência de Deus com a ajuda de argumentos científicos. Note-se que se trata de posições bastante marginais nos dois campos. Parece-me sem grande sentido procurar, nas ciências, argumentos a favor ou contra a existência de Deus. As ciências não são religiosas nem ateias.
Entre nós, o Padre João Resina, que foi professor do Instituto Superior Técnico de Lisboa e investigador do Centro de Física da Matéria Condensada, soube marcar sempre, com muita clareza, a distinção entre o campo da ciência e o da religião. Para este grande espiritual e pouco amante de liturgias farfalhudas, os conflitos entre a ciência e a Igreja católica não se colocaram entre duas verdades em conflito – como às vezes se diz –, mas entre duas maluqueiras (1). Apetece-me sugerir a edição, em livro, dos seus textos referidos em nota, para leitura dos estudantes de teologia, dos pregadores e dos catequistas. Sem ter em conta que o clima cultural se modificou a partir da prática das ciências, corre-se o risco de criar dificuldades escusadas, no campo religioso, às crianças e aos adultos, que podem ver conflitos onde não existem. Quando dirigia a catequese na paróquia do Campo Grande (Lisboa), o Padre Resina manifestou a sua preocupação antecipadora: que se fale dessas coisas às crianças antes de se falar no liceu; e que se diga que uma coisa é tudo o que vem de Deus, que é a criação, e outra a maneira como o Universo evoluiu e que não tem nada a ver com religião.
Referindo-se às acusações que lhe faziam em nome da Bíblia, o próprio Galileu observava com ironia: “a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos como se deve ir para o céu e não como vai o céu”. Sabia que estava a usar a palavra “céu” em sentidos completamente diferentes.
2. O cientismo positivista nasceu na segunda metade do século XIX. Era seu axioma que só é real aquilo que aparece e só aquilo que aparece. Este cientismo tornou-se uma verdadeira “religião da razão”. De sentidos ocultos – sem o culto do ocultismo – vivem os símbolos, a poesia, a música ou a religião.
O criacionismo nasceu, igualmente, na segunda metade do século XIX, em reacção contra a teoria darwinista da evolução. À versão bíblica fundamentalista, sucedeu outra mais doce que, admitindo a teoria da evolução, tenta provar, pela ciência, a existência de Deus. Esta versão tem o nome de teoria do desígnio inteligente (intelligent design). Embora mais simpática, não consegue, no entanto, escapar às acusações de confusão entre percurso científico e caminho religioso.
Os debates que percorreram o século XX não foram inúteis. A ciência clássica, com o seu sonho da previsibilidade perfeita, afirmava a sua vontade de construir um sistema exaustivo de representação do mundo. Certas religiões também faziam de conta que tinham Deus preso aos seus rituais, aos seus dogmas, às suas teologias e devoções. Também em teologia tudo era previsível, esquecendo o carácter histórico das suas construções e, sobretudo, a falta de vigilância que a teologia negativa – aquela que coloca sempre à perna de qualquer afirmação uma negação – impunha. A bondade de Deus não cabe no que sabemos da bondade humana.
A situação actual, tanto no mundo da ciência como no das religiões, está a tornar-se mais humilde. Os seus respectivos praticantes vão-se dando conta, à medida que avançam, que falta sempre mais do que aquilo que já foi encontrado. Pressentem que o real é infinitamente mais vasto do que o já conhecido.
3. A revista Le Monde des Religions (Jan-Fev.2010) apresenta um longo e interessante dossier sobre os cientistas que propõem um novo diálogo entre ciência e espiritualidade. Charles Townes, para evocar a sua própria experiência, recorda uma das observações de Einstein, escrita em alemão no hall da Universidade de Princeton: “Deus é subtil, mas não é malicioso”. O mundo que Deus criou é complexo e, para nós, difícil de compreender, mas não é arbitrário e ilógico. Sem acreditar que há uma ordem no universo e que o espírito humano – o do próprio investigador – é capaz de compreender essa ordem, o cientista não investigaria. Este género de cientistas recusa a esquizofrenia e a confusão. William Phillips sublinha que o facto do seu conhecimento científico apoia a sua fé. Se esta é não-científica (não significa anti-científica), nada tem, todavia, de irracional.
Poder-se-á dizer que os debates deste dossier não trazem nada que não se possa encontrar em obras especializadas. Sem dúvida. A sua importância é outra: fazer com que um público mais vasto tenha acesso a uma problemática essencial para viver, em convergência, o espírito da investigação científica e o espírito da investigação da fé. É esse o clima em que se deve desenvolver a Pastoral da Igreja.
 
(1)     J. Resina Rodrigues, Sobre a ciência e a fé, Communio I (1984/6), 573-582; Ciência, filosofia e religião, Communio XVII (2000/6), 560-568; Entrevista (Pública, 2007. 04. 12).
 
Fonte: PÚBLICO, 2010.01.24
publicado por Re-ligare às 12:34
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CEM POR CENTO RACIONAL, CEM POR CENTO CRENTE, de Frei Bento Domingues, O.P.

 

1.Aludi, no Domingo passado, a “um teólogo feliz”, mesmo na tormenta, chamado E. Schillebeeckx que passou, nas vésperas do Natal, definitivamente para as mãos de Deus. Sob certo aspecto, é verdade o que diz Fernando Pessoa: “morrer é só não ser visto” (1).
Quando isso acontece, o essencial fica sempre por dizer. Apetece-me, no entanto, recolher e partilhar a confissão desse teólogo cem por cento racional, não racionalista, e, simultaneamente, cem por cento crente. É uma confissão, não é uma argumentação. Essa percorre toda a sua obra. Aqui e agora, é a primeira que me interessa, respeitando o seu carácter oral, embora transcrita para a obra citada no Domingo passado.
Enquanto crente, sou racional, procuro argumentos racionais e sinto-me, assim, um crente cem por cento. Não há contradição. Ser crente não significa ser irracional. A fé é a confissão de um homem racional. A racionalidade da fé deve ser sempre desenvolvida e clarificada. Toda a minha teologia é teologia de um crente: Fides quaerens intellectum. A razão humana deve viver à vontade no domínio da fé. Apelar para a obediência e fechar os olhos não é cristão, não é católico. Precisamos de ser crentes racionais. S. Tomás é santo na sua racionalidade. Usa a razão para abordar a fé. A racionalidade é cada vez mais necessária, sobretudo, para reagir contra o fundamentalismo que também mina, cada vez mais, as Igrejas. O fundamentalismo, presente em certas comunidades cristãs, leva ao obscurantismo. É um grande perigo porque nega a razão humana.
É verdade que a razão humana não pode ser abandonada a ela própria. Corre o perigo de se fechar num puro positivismo. A fé cumpre a função crítica e correctiva para não se cair no racionalismo e para que não se feche ao mistério. Sem a razão humana, a fé torna-se fundamentalismo. Ambas, a fé e a razão, cumprem a função de crítica recíproca.
2. Outrora, falava-se de escolas teológicas. Havia mestres e discípulos. Hoje, já não é assim. A ideia de fazer escola está ultrapassada. As grandes sínteses, que duravam séculos, são coisa que já não existe. Eu não escrevo para a eternidade, mas para o ser humano de hoje que se encontra numa situação histórica determinada. Tento responder a questões. A minha teologia é datada, é contextual. Deseja, no entanto, ir para além da situação enquanto tal. Nas minhas obras, existe uma intenção universal, pois esforço-me por ter em consideração o porquê dos seres humanos de toda a humanidade. De outra forma, aliás, não seria boa teologia. A actualidade de uma teologia não se confunde com uma actualidade efémera. Para outros tempos, outras teologias virão.
Estou contente de ter dito alguma coisa para o ser humano de hoje e, talvez, também alguma coisa que interessará, ainda, a geração futura. Quando uma teologia pode alimentar a geração seguinte, é uma grande teologia e assim continua a grande tradição teológica.
3. É difícil traçar uma linha de divisão nítida entre a minha aventura pessoal e a minha vida de teólogo. Há dois textos da Escritura que sempre me apoiaram e que, ainda hoje, continuam a apoiar-me: “Estai sempre prontos a responder a quem vos pede a razão da esperança que vos habita” (1Pedro 3, 15) e “Não apagueis o Espírito. Não desprezeis as profecias. Examinai tudo, guardai o que é bom” (1 Ts 5, 19-21).
É o Espírito que me fala através destes textos sagrados. Por um lado, no esforço contínuo para me reorientar nas reacções inesperadas, para as quais sopra o Espírito de Deus; este mesmo Espírito deu, ao meu trabalho teológico, um carácter de esperança, libertador e construtivo que abre para a existência concreta, como muitos dos meus leitores, para minha grande alegria, me fizeram saber, verbalmente ou por escrito.
Por outro lado, o Espírito foi também a fonte do inesgotável carácter crítico dos meus escritos, da atitude crítica que, até hoje, me acarretou um certo número de cartas, nas quais, os meus irmãos cristãos me definiram como um “diabo em carne e osso”, “um lobo sob a pele do cordeiro”, “um herético da pior espécie” e “um imigrado na Holanda que para o bem da sociedade e da Igreja seria melhor regressar ao seu país de origem”.
O meu trabalho científico significa ainda, para mim, de modo muito consciente, uma forma de apostolado e, em particular, uma forma de pregação dominicana da Boa Nova: o Evangelho de Jesus, o Messias do Deus libertador, eleito do Espírito.
Aprendi, no entanto, por experiência que, se a religião é o maior bem do ser humano e para o ser humano é, também, muitas vezes, inteiramente manipulada para humilhar e até para torturar o ser humano no corpo e no espírito.
É por isso que, sobretudo nos últimos anos, o meu pensamento teológico preferiu defender o ser humano, homem e mulher, contra as exigências desumanas da religião, em vez de a defender contra as nossas ilusões de seres pecadores que todos somos.
Nos dois aspectos, crítico e construtivo, do meu pensamento teológico, procurei testemunhar aos outros a esperança e a alegria que vivem em mim. Sou verdadeiramente um homem feliz.
Em suma, só um ser inteligente pode acolher a fé; só um homem de fé pode deixar a inteligência, em todos os seus registos, viver em liberdade a multifacetada experiência cristã.
 
(1)     Inês de Barros Baptista, Morrer é só não ser visto, Planeta, Lisboa, 2009.
 
Fonte: PÚBLICO, 2010. 01. 17
publicado por Re-ligare às 12:31
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Sou um teólogo feliz, de Frei Bento Domingues, o.p.

 

1.É este o título que o italiano Francesco Strazzari deu a um livro – traduzido em várias línguas – elaborado a partir de colóquios com Edward Schillebeeckx. É uma das portas de entrada na vasta obra, de permanente inquietação humana e teológica, de alguém que, mesmo no meio das maiores dificuldades, se considerava um teólogo feliz. É também aquela que permite uma visita guiada que desperta a curiosidade sem dar a falsa ideia de que se passou a conhecer essa construção imensa e, para ele, sempre provisória (1).
E. Schillebeeckx nasceu em Anvers (Bélgica) em 1914, era o sexto de catorze irmãos. Entrou nos Dominicanos em 1934 e foi ordenado padre em 1941. Fez os seus estudos de filosofia e teologia em Lovaina e o doutoramento na célebre Faculdade teológica do Saulchoir, preparado na École des Hautes Etudes (Paris). Foi professor de Teologia e Hermenêutica na Universidade de Nimega (Holanda), tornou-se um dos teólogos mais influentes do Concílio Vaticano II e participou na fundação da revista internacional de Teologia, Concilium. Faleceu nas vésperas do Natal, a 23 de Dezembro de 2009.
2. Nesse pequeno livro há dois textos, em anexo, que me tocaram de modo especial. O primeiro é uma carta que o jovem Schillebeeckx recebeu de S. M. Matthijs em resposta ao pedido para entrar na Ordem de S. Domingos. Ele tinha frequentado o colégio dos Jesuítas e um dos seus tios era missionário jesuíta na Índia. Ele fez outra escolha e nisso não há nada de especial. O que me impressionou, na reprodução dessa carta / agenda para um início de caminhada, foi o reencontro com uma pessoa que conheci, já com uma idade muito avançada, em Roma. Matthijs escreveu muito pouco, mas foi num dos seus curtos textos em latim, sobre a explicação da coincidência de fundo entre a perspectiva do grande monge beneditino Odo Casel e a de Tomás de Aquino acerca de Cristo nosso contemporâneo – é, hoje, que acontece e se celebra o que aconteceu há dois mil anos – que me confirmou numa linha de investigação que ainda hoje me provoca. Foi num tempo em que S. Tomás era utilizado para invalidar a proposta daquele beneditino que morreu, em 1948, a cantar, na Vigília Pascal, o Lumen Christi.
O outro texto é do próprio Schillebeeckx, de homenagem a outro dominicano, Dominique Chenu (1895-1990), do qual Étienne Gilson dissera: “Padres como Chenu não há mais do que um em cada século” e de quem Alçada Baptista afirmava que esse era dos poucos teólogos que lhe deu a impressão de acreditar verdadeiramente em Deus. Foi o contacto com Dominique Chenu – um homem que soube pela rádio, durante a Segunda Guerra Mundial, que um dos seus livros tinha sido posto na lista dos livros proibidos pelo Santo Ofício – que provocou a maior evolução do percurso teológico de Schillebeeckx. Fez suas as palavras do medievista, Jacques Le Goff, nas exéquias desse grande homem: “o padre Chenu ensinou-me – como talvez muitos historiadores gostariam de o ter feito, sem de tal serem capazes – a clarificar o desenvolvimento da actividade teológica e do pensamento religioso na história, situando-os no centro da história universal, onde, sem dela depender, podem ser situadas entre a história económica e a história social, a história das ideias e a história eclesiástica em todas as suas dimensões materiais e espirituais”. E observa: o não-crente foi o único a ser aplaudido calorosamente na Igreja de Notre Dame (Paris).
3. No século XX, a Igreja em Portugal não gastava muito com teologia. A própria revista Concilium vive, hoje, exilada no Brasil. Quando era editada em Portugal, pudemos ouvir, em Lisboa, em 1966, E. Schillebeeckx a falar sobre O Deus oculto. O texto dessa memorável conferência foi publicado nos Cadernos o tempo e o modo – 3. Temos, também em português, um dos seus últimos textos sobre a identidade cristã enquanto desafiante e desafiada (1).
Entre estes dois momentos, este teólogo passou três vezes o cabo das tormentas com a Congregação para a Doutrina da Fé que, durante a presidência de J. Ratzinger, viveu um regime da maior arbitrariedade. E. Schillebeeckx foi sempre um investigador rigoroso, tanto na primeira fase dedicada ao pensamento medieval e patrístico, como em relação à análise da modernidade, à nova elaboração da cristologia e à história e prática dos ministérios na Igreja. Era rápido em rever posições de ordem histórica ou exegética, quando a crítica era fundamentada. Para ele, no entanto, a elaboração de uma hermenêutica teológica era um direito e um dever inalienáveis. Não aceitava, por isso, acusações de heresia ou de atentados à fé cristã em nome de outras interpretações que pretendiam ter o exclusivo da ortodoxia católica. Apesar de todos os dissabores, nunca lhe passou pela cabeça abandonar a Igreja e mostra-se muito agradecido aos seus superiores dominicanos, quer flamengos quer holandeses, pela abundante liberdade que, desde o começo, lhe concederam no seu trabalho teológico.A história humana, nos seus limites e contrastes, foi para ele a narrativa misteriosa do Deus oculto.
 
 (1) Je suis un théologien heureux, Cerf, Paris, 1995.
(2) A Identidade Cristã: Desafio e Desafiada. A propósito da extrema proximidade do Deus não-experimentável, in Anselmo Borges (Coord.), Deus no século XXI e o futuro do cristianismo, pp. 405-429.
 
Fonte: PÚBLICO, 2010. 01. 10
publicado por Re-ligare às 12:28
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Frei Bento Domingues, O.P. A ESTRELA

 

 

 

1.Em Outubro, José Saramago agitou alguma sonolência religiosa do país, não só com a narrativa Caim, mas sobretudo com as declarações que fez no seu lançamento, procurando deixar Deus e a Bíblia sem futuro. A provocação parece ter favorecido o despertar religioso. Muitos sentiram a necessidade de viver a fé de forma mais instruída e manifestá-la de modo mais desassombrado.
Neste contexto, o Prémio Pessoa, atribuído a D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, extravasa a alta qualidade cultural do agraciado. O estilo exemplar com que intervém na comunidade católica e na sociedade exprime aquilo que muitos esperam da Igreja e dos que servem com dignidade a sua missão.
A discussão em torno do “casamento” entre homossexuais continua no seu curso normal, com gente a favor e gente contra, sem recurso a campanhas religiosas ou anti-religiosas. Os bispos portugueses manifestaram-se nitidamente contra, mas sem apelar a manifestações de rua. Talvez seja a atitude mais acertada. Não é, aliás, uma questão que diga directamente respeito à jurisdição da hierarquia, pois não se trata da celebração católica de “casamento” entre homossexuais.
2. Nesta época, ouço repetir que o Natal está paganizado porque reduzido a uma festa de família. Há vários equívocos ligados a essa afirmação. A família é uma realidade da condição humana. Quanto aos seus modelos, tem assumido, ao longo da história, diferentes expressões, segundo as várias culturas.
Se o Natal consegue congregar as famílias – mesmo quando muitos não participam nas celebrações litúrgicas –, um cristão não pode deixar de se alegrar com esse belo fruto. A celebração litúrgica prossegue um objectivo muito mais amplo e profundo: anunciar que importa fazer família com quem não é da família dita biológica. O contributo original do Natal cristão – sem desvalorizar a família biológica – consiste, precisamente, em abrir o caminho para que o mundo se torne uma fraternidade. O grande contributo da celebração eucarística resulta do facto de manter viva a memória de Jesus, isto é, a vontade de pessoas de muitas famílias formarem um único corpo, alimentando-se da realidade viva de Cristo ressuscitado, que deu a vida para que todos se tornem irmãos, reunir todos os filhos de Deus dispersos (Jo 11, 52).
Este horizonte universal corrige a tendência para o isolamento do clã familiar. Do ponto de vista cristão, a família deve ser o lugar e o ambiente onde se desenvolve uma educação para encarar o mundo como globalização da fraternidade. Na laicização dos valores evangélicos – liberdade, igualdade e fraternidade – esta foi sempre a mais esquecida pelos programas políticos e sociais.
Daí, que um bom exercício natalício seja o convite de uma pessoa ou várias para participar na ceia ou no jantar do Natal: ter dentro alguém de fora.
3. Chamo a atenção para este ponto porque, graças a boas iniciativas, surgiram, na imprensa, artigos, entrevistas e cadernos sobre o Natal bastante interessantes. Não li tudo, mas no que li não observei que esta questão central tenha sido desenvolvida. Muitas iniciativas são de beneficência. Levar aos “sem abrigo” uma ceia ou um almoço, roupas e calçado, é uma forma de inclusão que só pode ser elogiada e apoiada, ao longo de todo o ano. No entanto, a Igreja Católica, na defesa da família, terá de colocar na sua agenda uma outra perspectiva: só se defende bem a família quando se vive no horizonte do mundo como família, isto é, na construção de um mundo de irmãos. A falta de partilha económica, cultural e social das famílias ricas deixa sem substância a celebração eucarística. O corpo de Cristo não é só o de há dois mil anos, em Belém, não é só o Cristo ressuscitado, não é só o Cristo presente na Missa, mas o corpo místico aberto a toda a humanidade.
No fundo, esquece-se o contencioso de Jesus, testemunhado nos Evangelhos, com a família em geral, com as famílias dos discípulos e com a sua família de Nazaré. Consta, literalmente, que os familiares de Jesus, por causa de andar a fazer família com quem não era da família e fazer da casa dos seus pais e irmãos a casa dos necessitados e excluídos, quiseram prendê-lo, julgando que Ele estava doido: Tendo Jesus chegado a casa, de novo a multidão acorreu, de tal maneira que nem podiam comer. Quando os seus familiares souberam disto, saíram para ter mão nele, pois diziam: «Enlouqueceu!»Nisto chegam sua mãe e seus irmãos que, ficando do lado de fora, o mandam chamar. A multidão estava sentada em volta dele, quando lhe disseram: «Estão lá fora a tua mãe e os teus irmãos que te procuram.» Ele respondeu: «Quem são minha mãe e meus irmãos?» Percorrendo com o olhar os que estavam sentados à volta dele, disse: «Aí estão minha mãe e meus irmãos. Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe» (Mc 3, 20-21; 3, 31-35).

Hoje é o dia da Estrela que leva os estranhos, os mais afastados, até ao Presépio. Nele, estava a nascer Estrela para todos aqueles que não querem uns à mesa e outros à porta. A epifania do Presépio aponta para uma religião aberta a todos os povos, a todos os excluídos da família humana, a sagrada família de Deus.

 

Fonte: PÚBLICO. 2010. 01.03

publicado por Re-ligare às 12:23
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Mais um Dia mundial da Paz

 

1.Tudo pode cair na banalidade. Apontar “um dia mundial”, seja do que for, já pouco significa. Pertence à rotina dos calendários. A rotina não poupa as escolhas da Igreja Católica, por mais acertadas que se apresentem. Para muitos católicos portugueses, no entanto, as questões da guerra e da paz, nas décadas de 60 e 70 do século passado, tornaram-se inadiáveis. Ao evocar algumas datas, sei que não toco na maioria das que merecem ser lembradas. Remeto para um excelente esboço dessa história (1).
Paulo VI, na sua mensagem de 8 de Dezembro de 1967, anunciou que, a partir de 1968, o primeiro dia do ano civil seria o Dia da Paz. Era um dos grandes frutos da Pacem in Terris (1963), de João XXIII. Para Portugal, com três frentes de guerra em África, a decisão tornava-se perigosa, pois, em alguns sectores do catolicismo português, havia muita inquietação e alguma efervescência. Em 1965, surgiu o documento A posição de alguns católicos, com 101 assinaturas.No Porto, em 1966, foi criada a cooperativa Confronto. A Pragma, nascida em Lisboa em 1964, no primeiro aniversário da Pacem in Terris, foi encerrada em 1967 pela pide.
2. No dia 1 de Janeiro de 1969, foi distribuído, às portas das igrejas na cidade do Porto, um importante documento intitulado: Porquê o Dia Mundial da Paz? Em Lisboa, na noite de passagem do ano, depois da Missa celebrada pelo Cardeal Patriarca, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, na igreja de S. Domingos, um grupo de mais de uma centena de jovens e adultos, leigos e padres, permaneceu nessa igreja até cerca das seis horas da manhã numa vigília em que houve cânticos, leituras e comentários que o pároco, com todos os seus esforços, não conseguiu sufocar. Alguns delegados de grupo tinham, no entanto, informado o Patriarca das suas intenções e obtiveram autorização para aí permanecerem. No dia 8 de Janeiro, porém, uma nota da Vigararia Geral do Patriarcado dava uma versão dos factos na qual destacava: “Manifestações como esta que acabam por causar grave prejuízo à causa da Igreja e da verdadeira Paz, pelo clima de confusão, indisciplina e revolta que alimentam, são condenáveis; e é de lamentar que apareçam comprometidos com elas alguns membros do Clero que, por vocação e missão, deveriam ser, não os contestadores da palavra dos seus Bispos, mas os seus leais transmissores”.
O Dia Mundial da Paz passava a significar, para algumas correntes do catolicismo português, não só um apelo, mas um instrumento, entre outros, de contestação pública da guerra colonial, bem expressa num poema cantado de Sophia de Mello Breyner: “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”.
No último dia desse mesmo ano (1969), foi entregue na Presidência do Conselho um documento, reflectindo várias correntes de opinião – com significativa presença de católicos, leigos e padres – criando a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Isto foi há 40 anos.
Uma das iniciativas mais emblemáticas, levada a cabo contra a ditadura do Estado Novo e a guerra colonial, foi a Vigília da Capela do Rato, realizada de 30 de Dezembro de 1972 a 1 de Janeiro de 1973, que teve apoios em todo o país e com tais repercussões que obrigaram o Presidente do Conselho a intervir em público, reagindo num longo discurso (37 minutos), na rádio e televisão. Os acontecimentos da Capela do Rato penetraram na Assembleia Nacional, provocando uma memorável discussão entre Casal Ribeiro e Miller Guerra.
3. Essas são evocações da memória. Um certo simplismo pós-moderno gosta de dizer que o passado passou, os mortos que enterrem os mortos e cada um aproveite o presente como puder. O tema do Dia Mundial da Paz do próximo dia 1 de Janeiro tenta contrariar esse primarismo: “Se quiseres cultivar a Paz, preserva a Criação”. É certo que já, em 1990, João Paulo II estabelecia uma ligação directa entre a construção da paz e a ecologia. Dir-se-á que este Papa quis aproveitar a boleia da Conferência de Copenhaga para fazer valer a concepção bíblica do mundo. Não era o Papa que precisava dessa boleia, pelo contrário, era a Conferência que precisava de todos os contributos que não teve. O Romano Pontífice empenhou-se no seu êxito.
O relativo fracasso da Conferência resulta de muitos factores, mas também de uma questão de fundo que atinge, além da fractura entre os muito ricos e os muito pobres, as pessoas, os grupos, as nações, a humanidade no seu conjunto. Vem de uma cegueira causada pela falsa luz dos apetites do presente: a dificuldade em deferir o prazer e os interesses actuais, para poder garantir o futuro das novas gerações. Diz-se que só temos uma vida para viver, a morte é sem retorno e, mais tarde ou mais cedo, todos morrerão. Quem tem sorte, tem sorte; quem não tem, não tem. Não nos peçam a nós mais esmolas para o futuro da humanidade.
O niilismo, como diz Viriato Soromenho Marques, tornou-se ontológico. Invadiu a nossa relação com o dinheiro e corrompeu a nossa esperança na continuidade das condições biofísicas e ecológicas que permitem, desde há milhares de anos, o drama de sombras e brilho da civilização humana.
O niilismo, porém, só vence quem deixa cair os braços diante dos fracassos. Bom Ano!
Cf. João Miguel Almeida, A Oposição Católica ao Estado Novo (1958-1974), Edições Nelson de Matos, Lisboa, 2008.
Frei Bento Domingues, o.p. Fonte: PÚBLICO, 2009. 12. 27

 

 

 

publicado por Re-ligare às 12:15
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Sábado, 6 de Fevereiro de 2010
VAMOS RIR?

«O vento sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim é todo aquele (….)». João 3:8

 
«Ninguém há que tenha domínio sobre o vento, para o reter (…)». Eclesiastes 8:8
 
«Assim como não sabes qual o caminho do vento». Eclesiastes 11:5
 
«Pois é, pois é;
Há quem viva escondido a vida inteira.
Domingo sabe de cor, o que vai dizer
Segunda-feira.»
 
A canção é de Jorge Palma e revela uma das maiores fraquezas do homem: a previsibilidade. Saber de cor, domingo, o que vai dizer, fazer ou pensar segunda-feira é um sinal de extrema pobreza. O cinzentismo da mesmice, a sensaboria da rotina, a palidez do ritual é indício da maior solidão de todas: a solidão de quem vive sozinho porque se abandonou a si próprio. Fugiu de casa. Já não existe ninguém dentro de si mesmo. 

Por outro lado, uma das maiores riquezas do homem é a sua capacidade de surpreender, de inovar, de inventar, de causar suspense, de deixar o seu mundo inteiro numa expectativa angustiante quanto ao seu passo seguinte. Tornar-se imprevisível, fazer o improvável, conseguir o impensável é um dos maiores patrimónios do homem. 

A pessoa imprevisível não obedece a lógicas internas, a preconceitos envelhecidos e a definições impostas. Umas vezes é indeterminado, outras vezes é insolúvel e nem sempre é coerente. 

O homem imprevisível é um pronome indefinido, é uma equação impossível. É um vento que sopra… onde quer!

O homem imprevisível foi bem descrito por Foucault: «quando pensam que estou aqui, já estou ali a rir-me deles».

Vamos rir? 
 
Luís Melancia
Docente na Lic. de CR

 

publicado por Re-ligare às 02:24
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