Há três anos publiquei este pequeno texto nos Evangelhos Comentados - 2007 (Lisboa, Firmamento). A base era um excerto bíblico: Jo 14, 23-29.
Jesus respondeu, e disse-lhe: Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada. Quem não me ama não guarda as minhas palavras; ora, a palavra que ouvistes não é minha, mas do Pai que me enviou. Tenho-vos dito isto, estando convosco. Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito. Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize. Ouvistes que eu vos disse: Vou, e venho para vós. Se me amásseis, certamente exultaríeis porque eu disse: Vou para o Pai; porque meu Pai é maior do que eu. Eu vo-lo disse agora antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós acrediteis.
“A palavra que ouvis não é minha”
Dificilmente alguma vez poderemos dizer que tudo fizemos para verdadeiramente encarnar todo o bem que poderíamos ter levado aos outros. Quantas vezes, olhamos para os jornais, para o mundo, ou mais perto, para as soleiras das portas que pisamos, e percebemos o quanto se poderia realizar.
São complexos os tempos que correm. Sabe bem ir aos locais mais perigosos de África, onde todo o grão de vida se materializa num simples saco de cereal que pode fazer a diferença, e participar. Participar na decisão de ter enviado o dito trigo, a água, os medicamentos, mas também sabe muito bem ir mesmo ao local e carregar com um saco de 30 ou 50 quilos.
Em certos locais, 50 quilos de trigo são francamente mais pesados que noutros.
Mas é constante a imagem que nos persegue os olhos: que mais se poderia fazer? Todos temos aqueles pequenos seres que nos segredam aos ouvidos as máximas que devemos seguir. Falemos de ética, de princípios elaborados e depurados pelos tempos, e que regem a nossa vida, falemos simplesmente numa fada, num gnomo, que nos segreda a solução de um dilema, todos nos deparamos diariamente com os problemas que não resolvemos.
Colocados acima de nós próprios, saídos das nossas casas, dos confortos a que estamos habituados, as palavras são o único limite que nos prende a uma ideia superior de dever para connosco próprios.
“A palavra que ouvis não é minha, mas do Pai”.
Que a palavra é do Pai, diz-nos Jesus, o Cristo, o Salvador dos Cristãos. Crentes ou não crentes, judeus, muçulmanos, cristãos, budistas, hindus, bahá’ís, entre outros, todos procuram o bem máximo nas suas preces, nos seus caminhos, nos ensinamentos e nas palavras que consideram sagradas.
Sempre se disse, quase em jeito de provérbio, que o Homem é um animal racional ... mas é humano porque tem sentimentos. No sentido da compreensão da Condição Humana, cada vez mais esta afirmação é mais verdadeira e premente: temos que ter mais sentimentos.
Urge construir os caminhos do Mundo para que se afirme a condição do Homem. Máximo denominador comum das religiões do mundo é esse sentido de caminho, de busca, de aprofundamento entre o Mundo, o Homem e o Transcendente que enforma a sua moral e a sua ética.
Indo ao Darfur carregar sacos de cereal, ir dar aulas de português num território perdido de Timor Lorosae, ou indo simplesmente trabalhar com um mais rasgado sorriso nos lábios, é a parte que cada um vai podendo dar para esse caminho comum.
Estará Deus, diariamente, na sua palavra, com um sorriso amigo a olhar para nós? Conseguirá Deus ainda ter um sorriso?
A palavra, como a que damos a um amigo, a quem precisa de ajuda, é um sorriso. Como diz o provérbio chinês, uma imagem vale mais que mil palavras.
A palavra não é minha.
Que a Palavra é do pai, sabemo-lo todos. Mas quem a diz somos nós, numa mensagem de aproximação a Ele. Também o carregar dos sacos de cereal que todos devemos ter à nossa mão é uma oração, uma palavra feita coisa.
Como rezará Ele? Rezará por nós? Pelos milhares de quilos que uma cidade ocidental ingere diariamente de anti-depressivos? Pelos milhares de abandonados no Darfur?
Como a literatura medieval em que muitos pios, humanos como nós, desejavam ardentemente o chamado Dom das Lágrimas, uma forma de catarse e de subida a um nível superior de espiritualidade, também pela palavra de todos nós o próprio Deus deverá chegar mais longe dentro de si mesmo.
As nossas palavras, as nossas idas aos nossos darfurs, às nossas covas da moura, aos nossos psicanalistas, também são palavras do Pai. Que Pai não se sente pelo que um filho pranta.
A Palavra. É todos nós.
Aqui há dias, passei também por esse texto (Lucas 24:13-35) que o Adriano Trajano aqui trouxe e que o professor Dimas aqui comentou de forma tão singular! Bem, mais do que passar pelo texto, passei por esse caminho.
Você também já por lá passou, com certeza! Chama-se caminho de Emaús – o caminho em que vamos desromanceando aos poucos. Desromancear significa pôr, gradualmente, fim ao romance!
O tempo do desromance é um tempo de muitas perguntas! Os dois, a caminho de Emaús, iam-se desanimando mutuamente e o texto diz que iam «falando entre si e fazendo perguntas um ao outro». É curioso: na manhã da vida temos muitas respostas…mas à medida que vai ficando tarde começamos a ter muitas perguntas!
- O que é que correu mal?
-Onde é que eu errei?
-O que é que me faltou?...
São perguntas como esta que você e eu fazemos no período do desromance. E nem sempre conseguimos ter as respostas. Mas olhe, ter a liberdade de perguntar já ajuda. E muito.
Mas não vale a pena querer ouvir as respostas se os olhos continuarem fechados. No caso vertente, eles perguntavam muitas coisas um ao outro, mas o texto diz que «os olhos deles estavam como que fechados»; e esse é o problema. É que há respostas que se ouvem com os olhos; há respostas que só se ouvem se os olhos estiverem abertos.
Qual é a causa mais comum para um desromace? Aquela que se assoma no texto é a do profundo desencanto pelo aparente desmoronamento de um sonho! Aquilo que antes nos acendia o coração começa agora a perder o seu calor. O coração vai batendo cada vez mais compassado; o ritmo interior vai ficando cada vez mais lento; os olhos cada vez mais baços. O caminho de Emaús é o caminho em que começamos a carregar penosamente às costas o que antes levávamos apaixonadamente ao peito!
E como somos rápidos a desromancear! Jesus de Nazaré não dava sinal de vida há três dias e, para eles, isso já punha em causa os últimos três anos!!!
De que necessitamos nós, afinal, no tempo do desromace? É tão simples: tudo o que necessitamos é encontrar uma boa companhia com quem consigamos passar a noite – a noite interior – juntos, «porque já é tarde». Companhia, do latim «cum pani» (com pão), significa ter alguém com quem possamos comer pão, alguém que queira ficar connosco até que a noite passe.
Já pus a mesa.
Luís Melancia
A pergunta proposta remete-nos ao texto do Evangelho segundo Lucas cap. 24, vers. 13-35, o qual nos deixa pasmos e perplexos com as atitudes do Nazareno. Para mim, o texto citado suscita numa série de indagações, a saber: Se conhece a Jesus, orando, louvando, lendo a Bíblia diariamente, evangelizando? Se conhece a Jesus, sendo fiel nos dízimos e nas ofertas, guardando as doutrinas, tradições, princípios, costumes e sacramentos? Se conhece a Jesus, jejuando, freqüentando regularmente as atividades da Igreja, fazendo votos de fé e obedecendo os seus líderes? Se conhece a Jesus, fazendo parte de uma Religião ou Igreja, recebendo uma carteirinha de membro e tendo cargo vitalício na instituição? Se conhece a Jesus, recebendo um santo numa sessão espírita ou oferecendo oferendas aos espíritos? Se conhece a Jesus, estudando teologias, Ciências das Religiões, as línguas bíblicas e elaborando homilias convincentes? Se conhece a Jesus rezando o terço diariamente, sendo um fiel contribuinte dos veículos de comunicação que propagam as boas novas? Se conhece a Jesus, atrofiado nos guetos eclesiásticos submissos ás “santas” autoridades constituídas por deus? Se conhece a Jesus, expulsando demônios, gritando histericamente, chorando e até mesmo falando em línguas estranhas? Por fim, se conhece a Jesus, na Bíblia ou na vida? Vale ressaltar que respeito todas as práticas supracitadas. Conhecer a Jesus, talvez, não constitui-se tarefa fácil, mas tentarei de alguma forma, observar o texto de Lucas e, assim, tentar extrair algumas imagens que julgamos ser interessantes para o caminhar diário. Bom, a primeira imagem é do Jesus que aparece subitamente e começa a caminhar com o casal, Jesus caminha conosco; a segunda imagem é do Jesus que logo começa a conversar com o casal, Jesus conversa conosco; a terceira imagem nos ensina que não basta apenas conhecer as Escrituras, pois as obras vêm antes das palavras, Jesus vai além de palavras; a quarta imagem testa até onde vai nossa prática da fé, isto é, o Jesus que simula não está cansado da longa caminhada e, nem tampouco, com fome, Jesus espera uma atitude nossa, a quinta imagem é do Jesus que entra na casa do casal, assim Jesus entra em nossa casa; a sexta imagem nos apresenta o Jesus que fica hospedado conosco; a sétima imagem traz o Jesus que parte o pão e distribui conosco, Jesus nos desafia a prática da partilha; a oitava imagem nos ensina que devemos abrir os nossos olhos para a realidade que tão de perto nos rodeia; a nona imagem quer a disseminação da prática da partilha, pois só assim os nossos olhos serão abertos; a décima e última imagem diz respeito a insistência na prática da partilha, observem os versículos seguintes (36-42), Jesus diz: “... Vocês têm aí o que comer...?” Jesus pede-nos ação. Mediante o exposto, de notar que essas imagens remetem-nos á outras passagens bíblicas que propõem conhecer Jesus. Percebo que o casal (Cleopa e Maria), representa muito bem as comunidades pós-ressurreição, de fato, só conheceu a Jesus, no partir do pão. Desse modo, partindo da leitura dos textos, sinto-me extremamente distante de conhecer a Jesus, creio que essas imagens ainda estão ofuscadas na minha caminhada cristã. Sinceramente creio que tenho conhecido mais a Igreja e o Cristo dos Céus do que o Jesus que sente fome e pede-me comida. Com isso, não estou fazendo apologia á prática de assistencialismos paternalistas e exclusivistas, mas só desejo de coração ardente, buscar tratamento para a minha “miopia” e quase “cegueira” da fé e, acima de tudo, ser mais humano e menos cristão.
Adriano Trajano
(Irmão)