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1.Nos anos incendiados pelo Maio de 68, quando todos os fundamentos pareciam abalados, interessei-me pela “Dinâmica do provisório” do Irmão Roger Schutz, da célebre comunidade de Taizé. Com ar de troça, um amigo dizia: mas esse Irmão Roger não saberá que, em Portugal, há cigarros “provisórios” e “definitivos”? Os definitivos não tiveram mais sorte do que os provisórios. Pelo contrário, na Igreja católica, nos finais dos anos 80 do século passado, até algumas proposições que pareciam provisórias – não são dogmas de fé – passaram a ter estatuto de “verdades definitivas”. Não pretendo, como Qohélet, render-me à lei do provisório – ilusão das ilusões, tudo é ilusão: “Há tempo para nascer, tempo para morrer; tempo para plantar, tempo para arrancar o plantado”(Ecl 3,2). No entanto, para S. Paulo, só a caridade, o mais alto dom do Espírito (agapé) – o amor irrestrito e incondicional ao próximo – é para sempre: Ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse amor, eu nada seria. Ainda que distribuísse todos os meus bens e entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse amor, isso nada me adiantaria. (…) O amor jamais passará. (…) Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor; mas a maior delas, porém, é o amor (1Cor 13, 2-13). A fé e a esperança são, apenas, virtudes do caminho. Tomás de Aquino (1224/1225-1274), num outro contexto cultural, dirá que a lei do Novo Testamento consiste principalmente na graça do Espírito Santo, graça do amor e da liberdade. Tudo o resto conta na medida em que prepara o seu acolhimento, favorece e exprime a sua floração e os seus frutos (ST, I-II, q. 106, a.1). 2. Seria, porém, temerário desprezar a Igreja como instituição em nome da pureza do Evangelho de Cristo, esquecendo que o Verbo se fez “carne”, fragilidade humana. O Evangelho da fraternidade precisa da instituição para que a sua energia não se dissolva. Importa, no entanto, que as instituições e as leis das Igrejas não se tornem um objectivo ou um fim. Só têm sentido como instruções e recursos de viagem. Christian Duquoc escreveu, precisamente, uma obra de eclesiologia ecuménica sobre o carácter provisório das Igrejas (1). A sua tese, embora subtil, é simples. A Igreja de Cristo afirma-se na multiplicidade das Igrejas, mas elas não devem seguir a tendência para a exclusão, lei natural dos grupos. Nenhuma deve estar tão imersa no profano a ponto de já não se diferenciar dele; nenhuma deve assumir o profano com a ilusão de o transubstanciar. A visibilidade das Igrejas não é a antecipação do Reino de Deus: nem na forma de celebrar, nem na vida social, nem no valor espiritual. Essa visibilidade serve para afirmar uma ordem simbólica, abrindo o quotidiano a uma dimensão de gratuidade e de comunhão, traço de Deus em Cristo. O modelo das Igrejas cristãs deve ser o acontecimento da Páscoa: Aquele, que todos julgavam definitivamente morto, vive para sempre. Elas devem proclamá-lo, no quotidiano, transformando a vida. 3. A objecção a esta esperança é grave: a nossa história desenrola-se sob o domínio da violência e a morte parece vitoriosa; as Igrejas nem sempre reconhecem que são provisórias nas suas formas, imperfeitas e criticáveis nas suas opções e condutas. Diz-se que o Espírito de Cristo nunca faltará à Igreja, mas as Igrejas, santas e pecadoras, podem faltar à convocatória da sua Palavra. Numa leitura retrospectiva, não reparando no que falhou, é sempre possível dizer que, em cada época, surgiram as iniciativas de que precisavam para se manterem em movimento (2). João Paulo II, secundado pelo cardeal Ratzinger, destacou a importância dos novos movimentos eclesiais, privilegiando aqueles que reproduzem as suas opções. Mas é uma maneira de dizer que também esses são provisórios. O Graal, um movimento internacional feminino, surgiu em 1921, na Holanda. Com a participação de mulheres de vários mundos, celebra, neste fim de semana, em Fátima, o jubileu da sua entrada em Portugal, interrogando a sua história no horizonte do futuro: «Que raízes e que espírito nos moveram no passado e nos movem hoje? Como identificar hoje os grandes desafios do mundo? Será possível proteger a Terra duma catástrofe ecológica? Que acessos trilhar para uma vida de qualidade para todos? Terão as mulheres um gesto diferente ou a igualdade é o alvo? Poder-se-á passar do medo da diferença cultural ao louvor da alteridade? Que ética para enfrentar os novos problemas?» Enquanto “tribu” dentro da comunidade da Igreja, o Graal investe numa liturgia ligada aos problemas e questões do mundo actual, expressão de uma Igreja inclusiva e aberta a todos, inscrevendo-se nas inquietações espirituais do nosso tempo. A espiritualidade do provisório não é a resignação à ditadura do momento, à sedução do evanescente. É um caminho de sabedoria que, no quotidiano agitado e fragmentado, escuta a voz do Mistério presente em tudo para nada idolatrar.
(1) Des Églises provisoires. Essai d’ecclésiologie œcuménique, Paris, Cerf, 1985.
(2) Fidel González Fernández, I movimenti dalla Chiesa degli apostoli a oggi, Milão, Rizzoli, 2000.
Frei Bento Domingues, o.p.
(1º director da Lic. em Ciência das Religiões)
Enquanto os homens forem imperfeitos, não haverá modelos perfeitos – nem ideológicos, nem políticos nem económicos. E quem pensava que o capitalismo o era, ainda está a tempo de mudar de ideias.
Mas digo hoje acerca do capitalismo o que Churchill disse, em Novembro de 1947, acerca da democracia: «Democracy is the worst form of government, except for all those other forms that have been tried from time to time." O capitalismo é também o pior modelo económico, à excepção de todos os outros modelos anteriormente tentados.
O capitalismo, apesar de imperfeito e incompleto, responde a quatro desejos e necessidades vitais do homem:
Produzir. O facto indesmentível é que o homem gosta de produzir, de criar. Isso diferencia-o dos animais: estes utilizam o que foi produzido; aquele produz o que quer utilizar. E também nos parece que é o sector privado aquele que mais incentiva à produtividade. O facto incontornável, iniludível, é que quando o patrão é o Estado, o desinteresse instala-se, a exigência vai-se, o afinco desaparece e a produtividade tende a diminuir.
Possuir. O princípio axial do capitalismo é o direito alienável à propriedade privada. Princípio este muito judeu, por sinal: já Jacob, depois de quase vinte anos a trabalhar como empregado do sogro, dizia: «Quando, pois, trabalharei também por minha própria casa?» Admitamos que nos é inato, a todos, o desejo de possuir a nossa casa, o nosso carro, as nossas propriedades, o nosso património. O capitalismo, enquanto modelo económico que assenta na propriedade privada, responde favoravelmente ao desejo de possuir.
Poupar. Pois é claro, se produzimos e possuímos, estamos a meio-caminho da poupança! O nosso problema, nestas sociedades de abundância sem ética, é o desperdício; se pensássemos nos milhões de euros que vão diariamente para o lixo por força do desperdício…Na célebre multiplicação dos pães, Jesus mandou que recolhessem as sobras do pão distribuído, «para que nada se perca», disse Ele. E vai daí, recolheram doze cestos cheios de pedaços!!! A receita de Calvino, que defendeu o direito à propriedade e à prosperidade, foi a da frugalidade, da sobriedade e da parcimónia. E com esse princípio modelou, com o seu pensamento económico e social, uma sociedade que ainda hoje respira a sua presença. Está claro: o capitalismo, na sua vertente representada pela «ética protestante», incentiva a poupança.
Partilhar. Outra coisa que o capitalista Calvino sublinhou a «bold» foi a importância da partilha - devemos acumular mas necessitamos partilhar. E aqui se fecha o quadrado: repartir é uma necessidade para quem recebe, mas mais ainda para quem dá, «pois é dando que se recebe», como dizia Francisco de Assis. O que tem faltado ao capitalismo selvagem é a ética! A ganância, a avareza, o egoísmo, a ambição desmedida estão a ferir um modelo, imperfeito, bem sei, mas que tem em si sementes de virtude. Já Abraão, o avô do capitalista Jacob, tinha aprendido que a posse implica, sempre, a partilha e que partilha assenta em dois princípios importantes referidos em Génesis 18:19: Tzedakah, distribuir por caridade e Mishpat, retribuir justamente.
O problema não é o capitalismo: é o egoísmo!
Luís Seabra Melancia
Docente na Lic. em Ciência das Religiões
Simão Daniel
(aluno do Mestrado em Ciência das Religiões na ULHT)
1.Há medos e medos. Medo do escuro, medo de casas assombradas, medo de viajar de avião, medo de ser assaltado, medo de falar em público, medo de contrair doenças, medo de mudar, medo de adormecer, medo de acordar, medo de sofrer, medo de viver, medo de morrer. Mais antigos ou mais modernos, são medos paralisantes e a lista poderia ser aumentada. Há, porém, medos que são necessários para evitar perigos e, nesse aspecto, podem ser pedagógicos. Deus nos livre de quem não tem medo de nada!
Encontramo-nos, actualmente, numa situação paradoxal: vivemos numa das sociedades mais seguras e prometedoras da História e mais obcecada com a segurança. Parece que quanto mais seguros estamos, objectivamente, mais inseguros nos encontramos e mais protecção exigimos. Vivemos um tempo de incertezas que nos tornam vulneráveis sob o ponto de vista social, económico e afectivo.
Isto revela-se, especialmente, no campo da saúde que depende de tudo. Somos, diariamente, alertados para os mil cuidados que é preciso ter, tanto acerca daquilo que a favorece como daquilo que a ameaça. Livros e revistas dizem-nos o que devemos comer, o que devemos beber e o que devemos evitar, não esquecendo os exercícios físicos indispensáveis e as atitudes da mente que os devem acompanhar. Nessas propagandas, a ciência, o palpite e a aldrabice moram lado a lado. Há quem diga que servem, sobretudo, para aumentar as listas de espera nos hospitais, nos centros de saúde, nos consultórios médicos, sem eliminar o recurso à bruxa e ao milagre. Agora, avisam-nos que a compra de medicamentos online só deve ser feita em sites certificados, pois a sua falsificação já rende mais do que o tráfico de droga. Para quem dispõe de grandes recursos económicos, há muita oferta requintada para afastar todos os medos sem, para já, evitar a morte.
2. O conhecido cientista Stephen Hawking foi receber, a Santiago de Compostela, o I Prémio Fonseca 2008. Para ele, a ciência dará uma resposta definitiva sobre o começo do universo. As leis, pelas quais a ciência se rege, deixam pouco lugar para Deus e o seu conhecimento substituirá as religiões. Mas, nem por isso, as suas declarações nos deixam mais seguros:
as actividades humanas afectam a tal ponto o sistema climático que será muito difícil, nos próximos cem anos, evitar um desastre no planeta Terra. Para o célebre físico britânico, o futuro da humanidade, a longo prazo, está no espaço. Entretanto, a humanidade poderá decifrar todo o genoma humano e modificar, a partir daí, aspectos como a inteligência, os instintos ou a duração da vida. Por outro lado, logo que apareçam tais superhumanos, haverá problemas políticos graves com os humanos não melhorados que serão incapazes
de competir com eles. Presume-se que ou morrem ou se tornam irrelevantes.
3. Será por falta de superhumanos que estamos mergulhados numa crise global, sem ter quem nos explique os misteriosos ciclos da economia de mercado e a liberdade incondicional dos gestores da especulação financeira? Mesmo em humanos não melhorados, era de esperar mais sabedoria e um pouco mais de humanidade. É verdade que um conhecido filósofo do “pensamento débil”, Luc Ferry, que não pode acreditar no afundamento do capitalismo, supõe que, quando se fizer um balanço, daqui a alguns anos, provavelmente, ir-se-á verificar que a actual crise poderá ser apenas um ajustamento e que
a maioria das pessoas terá sido largamente beneficiada.
Para este género de optimismo darwinista, as vítimas não contam, são o preço a pagar pela liberalização e competição dos mercados. Como todos, por enquanto, têm de morrer, felizes os que chegarem tarde, já com a mesa posta, sem terem sofrido as dificuldades dos antepassados. Se a actual crise pode ser uma bela ocasião para grandes negócios, neste momento, nem todos acreditam que a mão invisível do mercado se lembre dos bolsos vazios dos mais pobres e dos mal-remediados.
Não sabendo, no momento em que escrevo, as medidas que vão ser tomadas para vencer a crise, só vejo estilhaços em todas as direcções, nos cenários apocalípticos das grandes praças financeiras.
Teimo em recordar, apenas, o princípio típico da doutrina social cristã: os bens deste mundo são originariamente destinados a todos. Sublinho a opção histórica de Jesus: o amor preferencial pelos pobres. Como lembrou João Paulo II, hoje, dada a dimensão mundial que a questão social assumiu, este amor preferencial, com as decisões que ele inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-abrigo, sem
assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor: não se pode deixar de ter em conta a existência destas realidades. Ignorá-las significaria tornar-nos como o «rico avarento», que fingia não conhecer o pobre Lázaro, que jazia ao seu portão (Lc 16, 19-31).
Enquanto houver guetos de pobres e condomínios fechados de ricos, é de ter medo. Para evitar o medo omnipresente, é preciso reorganizar o espaço urbano, público, onde todos se possam encontrar e enriquecer a diversidade cultural. Juntos, não teremos medo.
Frei Bento Domingues, o.p.
(primeiro director da lic. em Ciência das Religiões)
artigo publicado no Público deste fim-de-semana.
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