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Domingo, 20 de Dezembro de 2009
Os filósofos e o Natal

 

1.A celebração do Natal, como festa da família, apresentou-se, durante muito tempo, como um dos maiores êxitos da inculturação do cristianismo. Mesmo com a chamada “crise da família” – ou dos seus modelos –, ainda não perdeu essa nostalgia. Cresceu, por outro lado, a sensibilidade para a condição dolorosa dos “sem abrigo”. Não se pode ignorar, todavia, que a situação daqueles que são apanhados entre fogos cruzados de diversas formações familiares pode acordar, em muitos, um irremediável sentimento de perda e solidão.
Com a vitória publicitária do Pai Natal sobre o Presépio, não falta quem procure desvalorizar, por razões opostas, a importância desta data, destacando que o 25 de Dezembro não é o dia do nascimento de Jesus Cristo. De facto não é, mas também não se trata de uma escolha arbitrária. É a substituição cultural e religiosa da festa pagã do nascimento anual do sol – segundo o calendário grego e romano – pela celebração do nascimento de Cristo, o verdadeiro sol da justiça e da graça, estrela da manhã de um mundo novo.
2. Nesta época de Natal, a revista Philosophie Magazine (Hors-série, Nov.-Dez. 2009) publica um número dedicado à “Bíblia dos filósofos”, limitada ao Novo Testamento. Os nomes são muitos e sonantes, destacando-se Kant, Leibniz, Nietzsche, Freud, Engels, Rosa Luxemburg, Lacan, Sartre, Wittgenstein, Todorov, Nancy, Luc Ferry, A. Comte-Sponville, Badiou, René Girard, Agamben, Žižek, Hannah Arendt, etc. Embora seja um número especial, o espaço de cada um tinha de ser muito limitado. Pode dar a ideia de tagarelice filosófica que Wittgenstein detestava. Quem desejar uma informação mais especializada sobre o que foi a presença, negada ou afirmada, de Deus na filosofia do século XX poderá recorrer a outras fontes, tendo sempre em conta a diferença entre o Deus dos filósofos e o Deus de Jesus Cristo destacada por Blaise Pascal (1).
De qualquer modo, a revista chama a atenção para uma problemática que importa acolher e discutir no interior da fé cristã. É verdade que, nesta época festiva, prefere-se o sentimento ao conhecimento, mas com o risco da continuada vitória da ignorância satisfeita. Paul Ricoeur já tinha reagido a esta situação: “Acho completamente inacreditável que, no ensino público, a pretexto da laicidade de abstenção própria ao Estado, nunca sejam verdadeiramente apresentadas, em profundidade, a significação das grandes figuras do judaísmo e do cristianismo. Chega-se ao seguinte paradoxo: as crianças conhecem muito melhor o panteão grego, romano ou egípcio do que os profetas de Israel ou as parábolas de Jesus; sabem tudo acerca dos amores de Zeus, conhecem as aventuras de Ulisses, mas nunca ouviram falar da Epístola aos Romanos nem dos Salmos. De facto, estes textos fundaram a nossa cultura muito mais do que a mitologia grega”.
3. O Presépio – Deus nascendo humano num curral – não é uma narrativa anti-filosófica nem anti-teológica. Dará sempre muito que pensar, não só a judeus e a gregos, como em todos os lugares e culturas, onde se tornar conhecido. Os Evangelhos Apócrifos não esqueceram a ruralidade de um menino aquecido pelo bafo do boi e do burro e os Evangelhos Canónicos encheram-no de pastores, de magos e de música. Ali, nascia um menino judeu que não cabia no judaísmo nacionalista. O seu reino era o do advento do humano universal. Não foi por acaso que colocaram Jesus a nascer na periferia porque toda a sua vida adulta foi a de colocar, no centro da sociedade, todos os que dela eram expulsos por razões de ordem económica, cultural, moral e religiosa.
O Evangelho de Marcos começou com Jesus adulto, experimentado e interveniente. Era um homem sem infância. Mas uma pessoa sem infância não pode ser humana. Por isso, embora num género literário muito especial – mais real do que o puramente histórico –, os Evangelhos de Mateus e Lucas tiveram a boa ideia de destacar o nascimento e o crescimento dessa criança de Nazaré. Só os animais é que nascem quase prontos para a vida adulta. O ser humano, depois de nove meses no seio materno, precisa, durante anos, da mãe e do pai para aí chegar. A história da relação familiar pertence à essência do que é tornar-se humano. Não se poderia falar de Deus humanado – como rezavam antigas orações portuguesas – sem passar pelo estatuto de criança.
Como o Novo Testamento é feito de cartas e narrativas, muitos estranham que, depois, apareçam doutrinas, definições e teologias marcadas pela cultura grega. Julgam como traição a passagem da inteligência da fé cristã de Jerusalém para Atenas pelos caminhos do Império Romano e da sua técnica.
A simplicidade do Presépio não é simplória como a do Pai Natal. O cristianismo é polifónico. Nunca poderá viver, de forma saudável, numa única expressão. Sem a linguagem quente da imaginação simbólica através da religião e das suas criações artísticas, sem as interrogações das diversas correntes filosóficas e das investigações científicas, sem a depuração mística, o cristianismo atraiçoa a condição humana que deve assumir na sua complexidade e diversidade. Santo Natal!
 
(1)     Giorgio Penzo – Rosino Gibellini (org.), Deus na filosofia do Século XX, Loyola, São Paulo, 2000.
 
Frei Bento Domingues, O.P. (Fonte: PÚBLICO, 20.12.2009)
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A retórica da alegria

 

1.Os católicos que forem, hoje, à Missa vão ser intimados a exultar de alegria. É de supor que alguns torçam o nariz e outros esbocem um sorriso amarelo. O amor e a alegria não podem ser comandados do exterior. A mim apetece-me dizer que essa palavra de ordem, seja qual for a sua eficácia, está certa. Se conseguir que um certo cristianismo transformado, durante séculos, em religião da tristeza num “vale de lágrimas”, se converta num laboratório de transfiguração da vida, bendita seja essa ordem. Acabemos de vez com essas caras de sexta-feira pouco santa para poder ressuscitar o quotidiano. Hoje, a tristeza já não vem, sobretudo, do púlpito e do confessionário. A religião laica obriga-nos a consumir, a semana inteira, imagens e noticiários sempre mais deprimentes. Os comentadores de serviço, em nome de uma especial competência analítica, parecem escolhidos para nos dar a certeza que nunca vivemos tão mal e que o futuro será ainda pior. Estamos tristes e há razões para ficarmos desesperados. Por outro lado, habituamo-nos a processos tão mórbidos que, ao erguer muito alto as expectativas e os sonhos – acontece, agora, a propósito de Copenhaga –, desconfiamos que já estão a encenar e a orquestrar a grande desilusão. Os actores da comunicação ficariam muito decepcionados se as coisas corressem bem, porque só a desgraça é uma boa notícia.
Há formas de abordar a crise global – sem nos despertar para a exigência de mudar os nossos estilos de vida – que acabam por globalizar a desesperança, tornando as sociedades humanas domesticadas ou ingovernáveis, criando bodes expiatórios ou caudilhos vestidos de salvadores. A proposta de conversão individual e colectiva tem um acolhimento limitado porque obriga cada pessoa a um exame de lucidez sobre as suas atitudes de fundo, perante a própria consciência e a sociedade, perguntando: que posso eu fazer para alterar esta situação, modificando-me também a mim próprio?
2. Creio que devemos apoiar o Domingo Laetare (Fl 4, 4-7), o Domingo da Alegria, que é sempre breve e ameaçada. Os neo-beatos dirão que é escusado, pois todos os Domingos, celebrações semanais da Páscoa, não são para outra coisa. É verdade, mas Paulo, apesar da insistente exortação da Carta aos Filipenses, que hoje se proclama na Missa, percebeu a situação precária da nossa alegria, sempre misturada com tristezas. Na Carta aos Romanos, escreveu uma das suas melhores peças de cristianíssima retórica, em três actos. Começa por dizer que “a lei do pecado e da morte” – explicando o sentido desta expressão no contexto da sua teologia – já não é quem manda. A nova lei é o Espírito de Cristo que nos faz chamar a Deus, Abba, porque somos seus filhos e herdeiros, co-herdeiros de Cristo e todos irmãos. Com Ele sofremos, com Ele seremos glorificados. Não entra, porém, em delírio místico. Logo a seguir, desce à complexidade da nossa situação real: estamos numa criação em dores de parto. É só em esperança que estamos salvos e a esperança ainda não é a pátria da alegria. É a força da perseverança no combate, filha do Espírito que socorre a nossa fraqueza. Porque perscruta os corações, só Ele sabe rezar, só Ele nos entende a nós e entende a Deus. A finalizar, surge um hino assombroso ao amor que Deus nos tem: se Deus é por nós, quem será contra nós? Criatura nenhuma nos poderá separar do amor de Deus manifestado em Jesus Cristo, nosso Senhor (Rm 8).
Não se pense, porém, que a frequência de exortações e declarações sobre a alegria signifiquem a sua abundância. Só se fala muito daquilo que faz muita falta. Isto também é notório no Evangelho de S. João. É porque os discípulos andam tristes que Jesus insiste: “isto vos digo para que a minha alegria esteja em vós e seja plena a vossa alegria” (Jo 15, 11). O autor do IV Evangelho justifica as cartas que escreve às comunidades cristãs, acerca do Verbo da vida – que as nossas mãos tocaram –, repetindo literalmente o Mestre (1Jo 1, 4).
Marcos, o autor da primeira narrativa do Novo Testamento, apresenta Jesus a fazer um noticiário sobre a alegria – Evangelho de Deus – para fundar as razões da nossa esperança, um futuro aberto: o seu Reino está próximo. Exige, porém, dos destinatários, uma viragem radical: convertei-vos e acreditai na alegria (Mc 1, 14-15). A tristeza e o sofrimento não fazem parte do seu programa.
O próprio Jesus, durante a sua intervenção e vendo o desânimo de tanta gente deprimida, tem esta exclamação: vinde a mim vós todos que andais acabrunhados e eu vos aliviarei (Mt 11, 28-30).
3. Mais dia menos dia, a morte virá. A sabedoria deste mundo diz que as separações serão sem retorno. Se assim for, as alegrias que vamos tendo – por mais autênticas que sejam – acabam por servir, apenas, para enganar uma tristeza sem apelo. Creio, pelo contrário, que em Deus há memória e coração para todos, redenção para todos os injustiçados da terra. Mais ainda: acredito que teremos um novo, misterioso e bom contacto com tudo e com todos, mesmo com aqueles que nunca conhecemos e com todos os mundos que nunca vimos. Paulo tem razão: comecemos já a viver e a sonhar com a alegria.

 

 

Frei Bento Domingues, O.P. (Fonte: PÚBLICO, 13.12.2009)

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Sábado, 19 de Dezembro de 2009
TRÊS ADVENTOS

 

1.O tempo é sempre misterioso. Nele nos realizamos, nele nos perdemos, está sempre a vir e sempre a ir não se sabe para onde. Tem dado muito que fazer aos físicos e aos filósofos, mas quando se abandona a reflexão filosófica, resvalamos para a banalidade. Num encontro ou numa conversa sem assunto ou para evitar assuntos melindrosos, “fala-se do tempo” que faz: do sol, da chuva e do vento, do frio e do calor.
O Novo Testamento (NT), no estado em que o conhecemos, foi escrito em grego e aproveitou a boleia da tradução da Bíblia para o grego, feita em Alexandria, antes do movimento cristão, ficando conhecida como “A Versão dos Setenta” (sábios). Contra o eterno retorno do mesmo, manteve a concepção linear do tempo, um sentido positivo para a história colectiva e individual da aventura humana, apoiada na fidelidade de Deus às suas promessas, apesar de todas as catástrofes.
São essencialmente três as noções de tempo que tecem os textos do NT. O tempo-duração (aiôn) designa a experiência da continuidade da vida, desde o nascimento até à morte. Ao incluir uma Presença divina no fluxo do tempo, sugere algo de eterno, “pelos séculos dos séculos”. O tempo-sucessão (khronos) designa um espaço determinado de tempo, mais breve ou mais longo, delimitado, “naquele tempo…”. O tempo-qualificado (kairos) significa um ponto crítico ou o bom momento, o tempo favorável de que é preciso tirar partido, a ocasião a não perder, a salvação. Só com vigilância e oração é possível reconhecer os “sinais do tempo”.
Apesar disso, o começo (arkhe) e o fim (telos) são as referências supremas do tempo-qualificado. Permitem unificar, sob a acção de Deus criador e juiz, a multiplicidade sucessiva das gerações humanas. Com Cristo, no entanto, “o fim dos tempos veio até nós”. Daí que o verdadeiro tempo seja “hoje”, o toque do eterno na sucessão dos tempos.
2. Quando, no Domingo passado, destaquei, na Missa, que estávamos a começar o Advento, um miúdo – que não aprecia o retorno do mesmo – lembrou-me que eu já tinha dito isto no ano passado. Esta observação crítica levou-me aos sermões de S. Bernardo (século XII) que fala de um tríplice Advento. Entre a primeira e a segunda vinda de Cristo, entre o Natal e o fim do mundo, o Senhor da história está sempre a vir até nós na sua palavra, nos sacramentos, nos acontecimentos, na voz da consciência. Pelo seu Espírito, faz da nossa vida a sua verdadeira e permanente morada (Jo 14, 23). Neste sentido, a “Parusia”, a presença do Senhor que vem, está sempre a acontecer: é Aquele que vem, que veio e que virá.
Este vocabulário tem vantagens e inconvenientes. Vantagens, ao dizer que não estamos ligados a um Deus parado numa vida parada, em clausura, mas no movimento do mundo. Inconvenientes porque, na vida, nem tudo depende só de Deus que não se sente nada honrado com a desvalorização da criatividade humana.
3. O Advento, preparação do Natal, começa mais cedo nos centros comerciais do que nas Igrejas. Este ano, afectado pela crise mundial que lançou milhões no desemprego, não se fala tanto de febre consumista, mas da urgência de solidariedade que ainda não conseguiu encher de vergonha aqueles que se enchem com a crise e nem levar os gestores da banca e das empresas privadas e públicas a repartir os seus salários escandalosos.
Ao dar corpo à esperança, a solidariedade faz parte da luta contra o desespero, abre o futuro. Não se perde em discussões estéreis e exibicionistas de prós e contras nem na contabilidade da crescente desgraça que esquece a miséria em que os mais velhos nascemos. Certos meios de comunicação estão tão marcados pelo pensamento binário, de ataque e defesa, que perderam a capacidade de olhar para aquilo que, no presente, em vários domínios, já anuncia outras possibilidades de futuro, o advento do novo, do que nunca existiu. O Advento é o alimento da esperança porque não nos deixa atolados na situação presente. Convoca as energias escondidas e recalcadas pela exclusiva exibição quotidiana do que há de pior nas pessoas e na sociedade. Neste sentido, os antigos textos do profeta Isaías, lidos nas celebrações da passada semana, podem parecer delirantes. Falam da conversão de espadas em relhas de arado, do lobo a viver com o cordeiro, do jantar preparado para todos os povos, enxugando as lágrimas e destruindo a morte para sempre. As palavras não dizem só o que é. Alimentam-se do desejo, do sonho, das possibilidades mais reais do que as reduções ao puramente empírico.
Pode parecer escandaloso que, no Advento, a Igreja mantenha uma semana consagrada à exaltação da alegria sem carpideiras. A concepção cristã da alegria resulta da recusa da indiferença e da opção pela compaixão activa. O caminho cristão não é o da dor e do sofrimento, mas do alívio da dor e do sofrimento. É sempre um cuidar de.
A alma do Advento é a fé de quem não se resigna, o amor de quem acredita na solidariedade, a esperança de quem, mesmo perante o horizonte mais escuro, resiste, mas não dispensa a companhia dos poetas, dos sonhadores e da música.
 
Frei Bento Domingues, O.P. (Fonte: PÚBLICO, 06. 12. 2009)
publicado por Re-ligare às 20:26
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A CHAMADA VIA DA BELEZA

 

1.Tem sido muito repetida – também por mim nestas crónicas – uma afirmação de Dostoievski: “A beleza salvará o mundo”. Tudo depende, no entanto, do que se entende por salvar o mundo, mesmo quando se pensa que ele pode ter salvação. A beleza poderá salvá-lo se o libertar da fealdade que lhe foi imposta. A permanente intoxicação dos sentidos envenena a vida toda.
Na descoberta dos caminhos para o mistério de Deus, as vias da verdade e da bondade foram as mais recomendadas. Esquecida, porém, a beleza, as outras perdem capacidade de falar à inteligência e ao coração. Desde Paulo VI, passando por João Paulo II e pelo Papa actual, o tema da beleza tornou-se insistente. Os meios de comunicação, ao realçarem o encontro dos artistas com o Papa, na Capela Sistina, no passado dia 21, obrigam a pensar no que falta à pastoral da Igreja, a nível local e global, para que as suas expressões sejam linguagens do reconhecimento e da construção da beleza.
Seria, no entanto, uma grande injustiça esquecer os pioneiros da renovação da arte sacra, no século XX, em vários países, incluindo Portugal. Há casos exemplares de grandes arquitectos, escultores, pintores e músicos convidados para criarem ambientes para um culto autenticamente cristão, que nunca esteve dependente da sua monumentalidade. Nasceu em celebrações domésticas e o templo mais autêntico será sempre o da vida em espírito e verdade (Jo 4, 23).
2. As discussões em torno da arte sacra recaem, quase sempre, sobre a arquitectura. É ela que dá mais nas vistas de todos, crentes e descrentes, e que torna a paisagem, aos nossos olhos, mais bela ou mais feia. Sob este ponto de vista, admira-me tanta condescendência com bancos e centros comerciais que não perturbam menos do que as igrejas mais medíocres.
A polémica rebentou, agora, com a chamada igreja-caravela do arquitecto Troufa Real, para o Alto do Restelo. Dizem que o sonho de um templo, para aquela zona, já tem quase 50 anos. Segundo declarações de 2002, atribuídas ao padre António Colimão, goês por nascimento e formação, teria sido incumbido, em 1990, de construir a nova igreja. Delineou um projecto que cruzava os Descobrimentos Portugueses com o Oriente – o missionário Francisco Xavier, padroeiro da paróquia, viveu durante dez anos na Índia, Japão e outros países orientais. Esclareceu que, para além da caravela, elemento alusivo ao oceano, as cores dos diferentes edifícios que integram o complexo religioso relacionam-se “com o imaginário dos Descobrimentos e valores simbólicos da nação indiana”.
Sempre adiada, no momento em que ia começar, soltaram-se as críticas e nem todas me parecem levianas. Não seria esta uma boa ocasião para que os arquitectos portugueses, interessados pela arquitectura religiosa, convocassem um “concílio pluridisciplinar” e aberto ao público, para debater questões que nunca são suficientemente aprofundadas? Hoje, ninguém põe em causa a liberdade do artista, quando as consequências da sua criação são suportadas só por ele. Tudo se complica, se as comunidades humanas e religiosas, a que se destinam, são esquecidas. Quando não é promovida uma cultura das expressões estéticas da fé, é inevitável resvalar para conflitos sem saída.
3. Nem só a arquitectura de grande qualidade basta para servir o culto. Uma celebração não implica só o espaço destinado à comunidade. Depende, sobretudo, dos celebrantes. Quando se diz “celebrantes”, pensa-se, quase exclusivamente, nos padres e nos bispos. Eles, porém, existem para que toda a comunidade seja celebrante porque toda ela é constituída por sacerdotes, assim constituídos e declarados no Baptismo. O ritual – não o ritualismo – existe para que a cadência do silêncio, da proclamação dos textos, da execução musical, da distribuição da palavra, seja o tempo da transformação da mente e do coração da assembleia, em comunidade de irmãos em processo de reconciliação e abertos ao mundo.
Como nada disto é fácil, são precisos muitos contributos e a muitos níveis. Se as celebrações não devem ser aulas de religião nem tempo de aborrecimento comunitário, também não podem ser transformadas em sessões de histeria colectiva ou de excitação fundamentalista. Timothy Radcliffe, ex-Mestre Geral da Ordem Dominicana, professor em Oxford, acaba de publicar um livro admirável, cujo título é uma pergunta: Haverá razões para ir à igreja? O subtítulo apresenta a Eucaristia como um drama em três actos. O prefácio pertence ao Arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, Primaz da Igreja Anglicana (1). Apresenta o Frei Timothy como um dos mais vivos e criativos pregadores do Evangelho da Igreja Católica de hoje. Isto pouco nos dirá porque os editores portugueses desconhecem a sua obra traduzida em muitas línguas. Quem a frequenta testemunha a alegria de ser cristão em diálogo vivo com a cultura do nosso tempo e com as expressões que ela reveste nos diversos continentes.
O dominicano José Augusto Mourão, Professor da Universidade Nova de Lisboa, com uma vasta obra publicada no campo da Semiótica e da teoria da Literatura, é também um notável criador de linguagem poética da fé e da oração litúrgica. Para alegria de muitos, acaba de sair, com apresentação de José Tolentino Mendonça, a sua poesia reunida (2).
 
(1)       Timothy Radcliffe, Why Go to Church?: The Drama of the Eucharist, Londres, 2009.
(2)       José Augusto Mourão, O Nome e a Forma, Lisboa, Pedra Angular, 2009.

 

 

Frei Bento Domingues, O.P. (Fonte: PÚBLICO, 29.11.2009)

publicado por Re-ligare às 20:23
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A “CARTA DA COMPAIXÃO”

 

1.No passado Domingo, na Mesquita junto à Praça de Espanha, por iniciativa, acção e amabilidade de Abdool Vakil, presidente da Comunidade Islâmica, foi possível reunir representantes de muitas religiões, ateus e agnósticos – não me recordo de participar, em Lisboa, numa assembleia tão diversificada – para reagir a um documento internacional chamado “Carta da Compaixão” (Charter for Compassion). Como em Portugal ainda é muito pouco conhecido, importa perceber como nasceu e o que pretende.
John E. Fetzer (1901-1991), pioneiro na construção de meios de comunicação, onde enriqueceu, fundou o Instituto Fetzer, com sede em Kalamazoo (Michigan), com a missão de “promover a consciência do poder do amor e do perdão na comunidade global emergente, baseado na convicção de que os esforços para abordar as questões importantes, no mundo, devem ir além das estratégias políticas, sociais e económicas, para atingir as raízes psicológicas e espirituais”.
O Prémio TED (Tecnologia Entretenimento e Design) surge como um evento, sem fins lucrativos, dedicado às “Ideias que vale a pena divulgar”. Desde 2005, com o apoio do Instituto Fetzer, reúne, em conferência anual, os mais fascinantes pensadores e realizadores do mundo que são desafiados, durante 4 dias, a uma viagem pelo futuro. São atribuídos prémios a três pessoas excepcionais que, em 18 minutos, apresentem “Um Desejo para Mudar o Mundo”.
Em 2008, a escritora inglesa, Karen Armstrong (1944-), recebeu este Prémio por ter lançado, com base na “Regra de Ouro”, tanto na sua formulação positiva como negativa, central em todas as religiões – quase sempre apresentadas como focos de guerras –, o desejo e o projecto daquilo que veio a ser a “Carta da Compaixão”. A participação global – pessoas de todas as nações, origens e credos –, no processo aberto da sua redacção, era um ponto de partida e uma exigência essencial. E assim aconteceu. Com esse método, a “Carta” consegue transcender as diferenças religiosas, ideológicas e nacionais para se tornar num instrumento de mobilização global.
2. A “Regra de Ouro” que K. Armstrong descobriu, com espanto, no coração das diferentes tradições religiosas, éticas e espirituais – embora formulada com pequenas diferenças e explicitada de várias maneiras na sua intervenção – costuma exprimir-se de forma negativa: não faças aos outros o que não desejas que outros te façam e, de forma positiva, faz aos outros o que desejarias que os outros te fizessem (1).
É este princípio que serve de guia a toda a “Carta da Compaixão”. As palavras dependem muito do seu uso e a “compaixão” evoca, para algumas pessoas, aquilo que, precisamente, não querem dos outros, isto é, comiseração, pena, situação de coitadinhos ou coitadinhas. Não entrando pela via do sentimentalismo e sem recorrer às etimologias que tem nas diferentes línguas, a compaixão não é, apenas, a recusa da indiferença. Impele a trabalhar, sem descanso, para aliviar o sofrimento do próximo, a destronar o nosso eu do centro do mundo, para aí colocar os outros. Ensina-nos a reconhecer o carácter sagrado de cada ser humano e a tratar cada pessoa, sem excepção, com respeito, equidade e absoluta justiça.
A Carta convoca todos os homens e mulheres a recolocar a compaixão no centro da moral e das religiões, a retomar o antigo princípio de que são ilegítimas todas as interpretações das Escrituras que geram violência, ódio ou desprezo, a garantir aos jovens informações precisas e respeitosas acerca das outras tradições, religiões e culturas, a incentivar uma visão positiva acerca da diversidade cultural e religiosa, a cultivar uma inteligência compassiva perante o sofrimento de todos os seres humanos, mesmo dos considerados inimigos.
3. Esta Carta não pretende lançar uma nova organização. Já existem centenas, em todo o mundo, a trabalhar, incansavelmente, em nome da compaixão e do diálogo não só inter-confessional, mas envolvendo todas as pessoas de boa vontade. O seu objectivo é fazer ressaltar o esforço de todos esses grupos e movimentos para aumentar a visibilidade do seu trabalho e torná-los contagiantes. A Carta pretende mostrar, de forma activa, que a voz do negativismo e da violência, muitas vezes associada à religião e às religiões, é apenas de uma minoria e que a voz da compaixão é, pelo contrário, a voz da grande maioria.
Em Portugal, como em muitos outros espaços, apanhamos o comboio em andamento, sem participar na elaboração desse pequeno e precioso texto sobre uma nascente escondida na floresta das grandes religiões, das grandes elaborações morais, muitas vezes ocupadas e preocupadas com discussões sem fim acerca de construções doutrinais e esquecidas do coração da vida. Que fazer para lhe imprimir uma dinâmica que envolva pessoas, grupos, organizações e movimentos para colaborar em tudo o que os une, respeitando e reforçando as diferenças que exprimem uma abundância de vida e de vontade na transformação do mundo?
 
(1)       Temas&Debates traduziu, desta escritora, desde 1998 até 2009: Uma História de Deus; Jerusalém: uma cidade, três religiões; O Islamismo: História Breve; Buda; Grandes Tradições Religiosas. Na Ed. Teorema apareceu Uma Pequena História do Mito.

Frei Bento Domingues, O.P. (fonte: PÚBLICO, 22.11.2009)

publicado por Re-ligare às 20:20
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CRUCIFIXOS E LAICIDADE

 

1. Segundo os meios de comunicação, perante a queixa de uma mãe, Soile Lautsi, que, em 2002, exigiu a retirada dos crucifixos na escola pública de Vittorino da Feltre (Pádua), onde os seus filhos estudavam, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em Estrasburgo, acaba de lhe dar razão – a escola pública não tem religião nem pode usar símbolos religiosos – e condena o Estado italiano a pagar-lhe uma multa de cinco mil euros por danos morais.
Esta decisão é considerada, por uns, como lamentável, por outros, como uma decisão histórica na afirmação da laicidade do ensino público e na defesa da liberdade individual em matéria religiosa na Europa. Na Itália, a sua rejeição parece bastante generalizada, o Governo italiano vai recorrer da decisão e o Vaticano está de acordo.
Em Portugal, em 2005, este tema prometia um balão de polémicas. Pela voz de D. Carlos Azevedo, então porta-voz da CEP, foi esvaziado com declarações muito descontraídas, cheias de bom senso, que não davam para alimentar a ira dos laicistas. Da parte do Governo também não houve nenhuma vontade de precipitação e, em várias instâncias, foi-se abrindo caminho para soluções que respeitem a laicidade, a liberdade de crer e não crer e a presença das religiões na escola pública, para aqueles que não as consideram fonte de alucinação.
2. Continuaremos, no entanto, confrontados com vários aspectos das problemáticas em torno desta questão, pois, nem o mundo nem a Europa esgotaram as suas surpresas nos séculos XIX e XX. Felizmente, dispomos, entre nós, de algumas referências que podem ajudar a não ser simplistas com soluções abstractas que não tenham em conta a complexidade do devir histórico das sociedades e mentalidades. Destaco uma obra incontornável, de perspectiva histórica, de Fernando Catroga, com prefácio de Anselmo Borges (1), e um texto indispensável de Eduardo Lourenço, elaborado nas fronteiras da história cultural, da filosofia e da teologia, lembrando que a laicidade não é inocente se não comporta distância em relação à tentação de se fechar sobre si como “discurso de verdade” (2).
A laicidade pode ser vista, antes de mais, como um processo histórico desencadeado como efeito da secularização, isto é, da perda de influência social da religião e da sua capacidade configuradora da história, manifestada na autonomia da ciência, da política, da filosofia, da economia e da própria moral. A partir do Vaticano II, redescobriu-se oficialmente que a própria auto-compreensão do cristianismo exige a autonomia das realidades temporais. Por outro lado, a essência da laicidade não está na separação entre o Estado e a Igreja ou a religião e a política e nem se limita, sequer, à questão religiosa. Como observa o historiador Émile Poulat, o que está em jogo na laicidade é, antes de mais, uma concepção do ser humano e o papel da consciência individual. O facto da separação da esfera civil e política da esfera religiosa e eclesiástica só atinge o seu verdadeiro sentido, quando essa separação é posta ao serviço da primazia da consciência e da defesa da liberdade humana.
3. Não basta, por isso, considerar a laicidade como um valor e um património histórico, cultural e político comum à Europa e à cultura ocidental, ignorando a sua raiz e origem profundamente religiosas e, concretamente, cristãs. Foi nesse contexto que nasceu e se desenvolveu. É difícil compreender a sua génesis e sentido fora da matriz que o cristianismo lhe proporcionou.
É certo que os processos de laicidade e sua implantação se desenvolveram em confrontações abertas com a religião e com a Igreja, rompendo com a sua abusiva tutela. Apesar dessa beligerância, não se pode esquecer que as noções de pessoa e humanismo, de autonomia e liberdade e direitos humanos ou da própria noção de separação do poder político e religioso só se tornam compreensíveis a partir da tradição cristã e judaico-cristã. Para Marcel Gauchet, como para vários outros analistas, a concepção laica da realidade do mundo, da natureza e do vínculo social constituiu-se, essencialmente, no interior do campo religioso, alimentou-se da sua substância e encontrou, aí, o meio para desabrochar como expressão das suas virtualidades fundamentais.
O quadro dualista, em que se tem movido a confrontação entre Igreja e Estado, religião e política, tornou-se insuficiente para entender as novas formas de expressão religiosa, a visibilidade pública da fé e as manifestações públicas do religioso no mundo actual. Como nota o já citado Émile Poulat, “a Igreja e a religião perderam o estatuto público de que gozavam no espaço público e, com ele, deixaram de ser um poder, mas encontraram um lugar legítimo na sociedade civil – essa grande família de corpos intermédios entre o Estado e os cidadãos – a partir do qual, podem continuar a ser uma autoridade. Serão referências, tanto mais autorizadas e desejadas, quanto mais afastarem qualquer tentação de dominação política, social, cultural, económica ou religiosa.
O seu reino não é o das querelas de imagens, mas o seguimento do Crucificado no serviço dos excluídos.
 
(1)       Entre Deuses e Césares, Coimbra, Almedina, 2006.

Religião – Religiões – Laicidade, in “Europa e Cultura”, Gulbenkian, 1998, pp. 71-78

 

Frei Bento Domingues,O.P. (Fonte: PÚBLICO, 15. 11.2009)

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COMPANHEIROS DE VIAGEM

 

1.Na semana passada, a liturgia da Igreja Católica foi muito sóbria, apesar do paradoxo que celebrava: aqueles que morreram estão vivos. Por outro lado, que vão as pessoas fazer, aos cemitérios, onde só existem os restos mortais daqueles que amam? Perante essa escuridão, confiam que, do outro lado do abismo, os parentes e amigos não estão abandonados. Vão ali, para não se esquecerem deles.
Entre os mortos, nas celebrações civis e religiosas, também há categorias. Nas civis, discute-se quem merece e quem não merece ir para o Panteão Nacional, quem tem direito ou não a uma estátua, a um nome de rua ou de avenida. Pertence aos detentores do poder decidir as canonizações por méritos políticos, sociais ou culturais. Nos elogios fúnebres, enaltece-se a obra e o exemplo de uma personalidade, vincando, assim, o carácter elitista da consagração civil. Segundo esses critérios, para quem não deixar obra de vulto, não há memória que os resgate. No exército, ainda há lembrança para todos os militares, mediante a evocação do Soldado Desconhecido. Nos cemitérios, há margem para a devoção e a ostentação, segundo as posses de cada um.
As celebrações católicas, com a festa de Todos os Santos, fazem um esforço contra o elitismo. Confessam que os canonizados – e os que estão a caminho de o ser – são uma pequeníssima minoria em relação às visões deslumbradas do Apocalipse: “(…) Não façais mal à terra nem ao mar nem às árvores, até que tenhamos marcado na fronte os servos do nosso Deus. E ouvi o número dos que foram marcados: cento e quarenta e quatro mil de todas as tribos dos filhos de Israel. Depois disto, vi uma multidão imensa, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap 7, 2-14). No esforço contra o elitismo, estas celebrações não vão até ao fim: deixam ainda de fora os classificados sem glória, os Fiéis Defuntos.
2. Perante a morte, as celebrações laicas ou religiosas são formas de protesto, aparentemente inúteis, contra essa fatalidade. A partir de noções elementares comuns a toda a espécie humana, e que podem ser expressas por todas as línguas, bons, maus ou indiferentes são todos companheiros de viagem. Na inclusão ou na exclusão, na guerra ou na paz, fazem parte de uma aventura que mal sabem interpretar e que não é na morte que se pode resolver: é no caminho. As interpretações da vida – sejam elas científicas, metafísicas, éticas, estéticas, religiosas ou laicas – não são indiferentes à qualidade da viagem. Mas, se não quisermos que valha a vontade do mais forte, será preciso conversar, tornar o outro nosso hóspede ou de aceitar a hospitalidade do outro. Isto significa reconhecer que não estamos acabados, que não somos perfeitos, por isso estamos a caminho, com o sentido que cada um ou cada grupo descobre para a sua vida. Caminhamos com gente que vem de todo o lado, de todas as culturas, povos e línguas. Fora do diálogo, não há salvação.
3. Deste modo, num mundo pluralista, se resistirmos à mentalidade de gueto, a viagem é comum a laicos e religiosos, embora interpretada de formas diferentes. É o que nos indica uma parábola de há dois mil anos, a célebre Parábola do Samaritano (Lucas 10, 29-37) que pode ser entendida como proposta, como acusação ou como remorso, por qualquer pessoa, de qualquer língua, de qualquer cultura, de qualquer religião. Há uma versão, longe da letra, perto do espírito, cantada por Mercedes Sosa e Beth Carvalho: “Eu só peço a Deus que a dor não me seja indiferente…”. Basta esta indicação para encontrar, na Internet, esse impulso novo para caminhar sem olhos vendados, olhando para as margens.
Os Actos dos Apóstolos resumiram o itinerário da intervenção de Jesus, neste mundo, numa frase muito simples: “passou, fazendo o bem”. Quando S. Mateus tentou interpretar o sentido de toda a história humana, levando-a a tribunal, quem se salva e quem se condena não é por causa de ter cumprido ou violado os preceitos de qualquer cultura ou religião, mas por aquilo que fez ou deixou de fazer perante a dor dos desamparados (25, 31ss). Este é, aliás, o cume da viagem da ética e da santidade: fazer o bem porque é bem; evitar o mal porque é mal, como já dizia S. Tomás de Aquino. Para o justo não há lei. A sua lei é a bondade, a compaixão. O princípio do recto agir não faz o bem pela recompensa nem evita o mal com o medo do castigo.
Durante muito tempo, o enjoo causado por péssimas “vidas de santos”, fez-nos perder de vista que a santidade é uma viagem de permanente transformação até encontrar o essencial da vida, segundo as características de cada pessoa. O Reino de Deus está dentro de nós, se nos tornarmos lugares de escuta do Espírito, no íntimo da consciência e na beleza e agonia do mundo.
A festa de Todos os Santos e dos Fiéis Defuntos, entendida a partir das deslumbrantes sugestões do livro do Apocalipse, é a festa da gente boa de toda a história humana e daquela que o amor transformou. Não tenhamos medo de juntar, no mesmo reino de alegria, santos ateus, agnósticos, místicos e aqueles que nunca souberam distinguir a mão direita da esquerda.
 

Frei Bento Domigues, O.P. (fonte: PÚBLICO, 08. 11.2009)

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Sexta-feira, 18 de Dezembro de 2009
Tempo glorioso para a Bíblia

 

 

1.Nos confrontos, que vi e li, com José Saramago, por causa das suas declarações sobre Deus, as religiões e a Bíblia, a insistência recaía sempre no mesmo: “Saramago pronuncia-se, de forma rotunda, acerca do que ignora”. Ele, pelo contrário, declarava que conhecia suficientemente a Bíblia e os malefícios das religiões para poder dizer o que disse.
Longe de mim pensar que estes confrontos, nos meios de comunicação – atingem multidões –, sejam totalmente inúteis, embora não possam vencer a sua inerente superficialidade. Nestes casos, cada um reforça as suas posições. Quem não gosta de Saramago fica confortado: ele pensa que sabe tudo e não sabe. Quem gosta dos seus livros, das suas opções políticas e culturais lamenta o tom dos seus pronunciamentos, mas não perde a fé no escritor. Um certo paternalismo apressa-se a reconhecer a sua capacidade de ficcionista, mas pede-lhe que, fora da ficção, se cale muito caladinho para não atropelar o prestígio de um Prémio Nobel, tanto mais que não temos muitos.
2. De qualquer modo, este foi um tempo glorioso para a Bíblia, em Portugal. Veremos se terá ou não consequências duradoiras.
Como Lutero não passou por cá e como foi no estrangeiro e fora da Igreja Católica que o tradutor da Bíblia para português no século XVII, João Ferreira Annes d’Almeida, exerceu o seu apostolado bíblico, as Sagradas Escrituras repousaram em latim. Catecismos, sermões e devoções substituíam-nas, pretendendo gozar das significações do texto sem o texto. Por outro lado, sobretudo a partir do século XIX, tornou-se inevitável o confronto entre as ciências humanas e a Bíblia. O mundo católico não podia evitar o que estava a acontecer no mundo protestante. O famoso dominicano Marie-Joseph Lagrange (1855-1938) fundou, em 1890, no meio de suspeitas e proibições, a Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É o mais antigo centro de pesquisa bíblica e arqueológica da Terra Santa, estabelecido nos espaços do convento dominicano de St-Étienne, convento fundado, em 1882, sob o nome de Escola Prática de Estudos Bíblicos, sublinhando a sua especificidade metodológica. Coroando anos e anos de investigação e de publicações científicas, surgiu a famosa Bíblia de Jerusalém (1956). Na altura, os exegetas insistiram na sua grande diferença: além da tradução dos originais do hebraico, aramaico e grego, apontava a contextualização histórica, dentro do ambiente físico e cultural, relativo à época em que cada livro foi escrito. Era uma obra que reflectia "a união do monumento e do documento", na linha de Lagrange, ligando "a arqueologia, a crítica histórica e a exegese dos textos".
Este feliz resultado só foi possível porque a tensão entre os exegetas e o magistério eclesiástico abrandou nos começos dos anos 40 do século passado e foi oficializado com a publicação da encíclica Divino afflante Spiritu (1943).
3. O catolicismo português viveu bastante alheio não só à revolução que tinha acontecido na investigação da Bíblia e dos seus mundos, como ao próprio movimento bíblico das Igrejas. Já não estamos, propriamente, nessa situação. Sem pretender fazer a história da viragem, temos de realçar o grande trabalho que os Padres Capuchinhos começaram a desenvolver a partir de 1951. Em 1975, assumiram um rumo colectivo: o apostolado bíblico. Hoje, a Difusora Bíblica organiza uma multiplicidade de actividades e publicações. A mais conhecida é, certamente, a tradução da Bíblia Sagrada. Além das Semanas Bíblicas, a nível nacional e regional, editam duas revistas (uma de carácter popular e outra científica), a Actualidade Bíblica semestral e traduzem os prestigiosos Cadernos Bíblicos. Na Internet é fácil medir o volume desse esforço.
Entretanto, vários biblistas, quer a nível de divulgação quer a nível académico, já não permitem que se diga que, em Portugal, ninguém sabe nada de Bíblia.
Este ano, muitos portugueses foram surpreendidos com a nomeação do dominicano, Francolino Gonçalves, para a Comissão Bíblica Pontifícia. Não admira. Está há 40 anos, investigando e ensinando, na já referida Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém: “vivo lá enclaustrado. A minha vida é quarto e biblioteca. Praticamente, não necessito de sair. Outrora saía mais, quando estava ocupado com as viagens arqueológicas da Escola”. De facto, só os convites para cursos breves e conferências o têm levado a todos os continentes. Marcou os anais da investigação, em certas áreas do Antigo Testamento, tornando-se uma referência incontornável nos grandes centros de investigação.
Não esquece os seus começos: “Recordo-me que tive – em Portugal – um professor extraordinário, Frei Raimundo de Oliveira. Tinha uma capacidade de comunicação absolutamente excepcional. Sabia muito, mas sabia ensinar ainda melhor”. Ele também tinha sido aluno da Escola Bíblica de Jerusalém.
É urgente que um conjunto de estudos de Francolino Gonçalves, absolutamente fundamentais, dispersos por revistas portuguesas de escassa tiragem, seja publicado numa edição que destaque a sua importância para a cultura nacional.
 
Frei Bento Domingues, O.P. (Fonte: PÚBLICO, 01.11.2009)
 
 
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Confronto na afabilidade

 

1.Seja qual for o interesse literário de Caim de José Saramago, as declarações feitas no seu lançamento foram interpretadas em registo publicitário: o importante não é que se diga bem ou mal; o importante é que se fale.
Neste sentido, o êxito das palavras de Saramago não podia ter sido maior e mais rápido. Pôs o país a falar daquilo que, segundo o escritor, Portugal ignora: a Bíblia. Há quem diga que ele estava feito com a Sociedade Bíblica e os representantes dos três monoteísmos (Judaísmo, Cristianismo e Islão). Dizendo o pior das Sagradas Escrituras, faz um dinheirão. Por outro lado, a Bíblia e o Corão, livros malditos, conseguem uma publicidade que a beatice das Igrejas dificilmente poderia conseguir. Se, além disso, a Bíblia é o livro mais editado, vendido e lido, as declarações malditas tornaram-se uma bênção para José Saramago. Embora em posições contrárias e por razões diversas, todos teriam ganho com a ignorância que mutuamente se atribuem. 
O autor de Caim não percebe como é que a Bíblia se tornou um guia espiritual: está cheia de horrores, incestos, traições, carnificinas. É um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana. Apesar deste tiroteio, disse de que não iria causar problemas, na Igreja Católica, porque os católicos não lêem a Bíblia, só a hierarquia e ela não está para se incomodar com isso. Admitia que o livro pudesse incomodar os judeus, mas isso pouco lhe importava.
Precipitou-se. Segundo o DN, ficou surpreendido com “a frivolidade dos senhores da Igreja. Não leram o livro e vieram logo, com insólita rapidez, derramar-se em opiniões e desqualificações, tanto da obra como do seu autor. Como falta de seriedade intelectual, não se poderia esperar pior. Compreendo que tenham de ganhar o seu pão, mas não é necessário rebaixarem-se a este ponto".
Terá Saramago, no duplo papel de carrasco e vítima, esquecido que a discussão ainda não está centrada no livro – poucos ainda o terão lido –, mas nas suas declarações de ódio às religiões e à Bíblia? Uns atribuem as suas declarações a um estado de acentuada senilidade, outros dizem que esse ódio é do foro psiquiátrico: como não teve nem tem coragem de denunciar as mortandades e os crimes do comunismo, transfere, para um passado muito longínquo, as atrocidades que, em nome dessa ideologia ateia, foram cometidas durante a sua própria vida.
2. Na troca de insultos, na resposta ao ódio com o ódio, ao mal com o mal, não se salta fora da lei de talião: “olho por olho, dente por dente” (Ex 21, 23-25 e par.).
Na boca de Jesus, nasceu outra “lei”: “amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam”. Vem, depois, a versão positiva da “regra de ouro”: “Fazei aos outros o que gostaríeis que os outros vos fizessem” (Lc 6, 27-31 e par.). Paulo resume tudo num só mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Rm 13, 8-10). Não se pode construir, com estes e outros aforismos do mesmo género, um manual ou um catecismo de ingenuidade. Jesus Cristo também lembrou uma regra de paradoxal sabedoria no mundo de contradições em que vivemos: “sede simples como as pombas e prudentes como a serpente” (Mt 10, 16).
Quem tiver lido a Bíblia sabe que esta biblioteca de muitos géneros literários, construída ao longo de séculos, não é um manual nem de bons nem de maus costumes. Os seus autores humanos caíram, muitas vezes, na tentação de atribuir a Deus, que está para além de todo o nome, não só o louvor, mas também os seus desejos de vingança. Não se deve tomar a parte pelo todo. Ler exige saber ler.
3. Foi traduzido, de Enzo Bianchi que esteve há pouco em Portugal, um livrinho com um título – Para uma Ética Partilhada – que resume o seu conteúdo e constitui uma boa ajuda para esta época de crispações, delícia de alguns meios de comunicação colonizados pelas touradas, por cenários de sangue. O livro abre com uma interrogação: Será ainda possível um confronto na afabilidade? Parte de uma verificação: “Para todos os que se empenharam no diálogo entre crentes cristãos e não cristãos, entre católicos e «laicos», para os próprios católicos que acreditam no diálogo vivido na escuta, no esforço de não desprezar o outro, mas de encetar com ele um confronto na afabilidade, estes últimos tempos podem dizer-se – em linguagem bíblica – «dias maus»”.
Crentes e não crentes acusam-se, mutuamente, de intransigência e arrogância. Não desesperemos. José Saramago acaba de dizer, numa entrevista ao JL: “se a alguém ocorrer fundar uma internacional da bondade eu inscrevo-me. Ela é fundamental, e eu coloco-a acima de qualquer atributo humano, incluindo a inteligência e a sensibilidade”.

No final do seu livro, Enzo Bianchi coloca a questão fundamental: quem é o ser humano? Para onde vai? “Como pode viver numa sociedade que luta contra a barbárie e a favor da humanização? Das respostas que cada qual, a partir do seu património espiritual, souber dar depende, sem dúvida, o nosso futuro, mas também, já desde hoje, a qualidade da nossa vida pessoal e da convivência civil”.

 

Frei Bento Domingues, O.P. (Fonte: PÚBLICO, 25.10.2009)

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Casamento católico em vias de extinção

 
1.O alarme foi dado pelos meios de comunicação social baseado em dados estatísticos: em 10 anos, na diocese de Lisboa, os casamentos católicos baixaram 62%. Observaram-me que, se este ritmo se mantiver, em poucos anos, deixará de haver divórcios de casais católicos e um tema recorrente nestas crónicas – a situação dos divorciados na Igreja – também estará esgotado. É melhor, no entanto, não fazer previsões.

Dir-se-á que, depois de alguma alergia ao institucional, do proclamado desinteresse pela política, pelos partidos, pelos actos eleitorais, as instituições da Igreja e a Igreja como instituição também não poderiam fugir muito à tendência geral. Em parte assim será, mas o realce que a notícia teve, nos meios de comunicação social, dava a ideia de que o catolicismo, em Portugal, estaria em acentuado declínio e a hierarquia católica não poderia continuar a alimentar a ficção de que só existe o modelo católico de família que defende.
Não adianta muito pensar que este decréscimo brutal dos casamentos católicos seja apenas o fruto de políticas laicas acerca da família nem a sua estrepitosa divulgação seja regozijo com a perda de influência do catolicismo. Em Portugal, a liberdade religiosa não está em perigo, nem o direito ao casamento católico. A questão de fundo é outra: que fazer para que as famílias se transformem numa fonte de vida evangelizadora das novas gerações? A estatística citada sugere que as novas gerações só poderão receber uma herança se esta for um convite à invenção de novas formas de ser cristão.
2. Para a compreensão e vivência do casamento católico, surgiu, em Paris, em 1938, um inspirado movimento, obra do Padre Henri Caffarel (1903-1996). Em 2006 foi aceite o pedido de abertura do processo da sua beatificação.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o movimento expandiu-se e foi criada a revista "L'Anneau d'Or", divulgando a experiência das pequenas equipas e a sua espiritualidade. Em 1947, o movimento organizou-se e foi elaborado um documento fundador: a "Carta das Equipas de Nossa Senhora”, revista em 1976. Em 2002, o Pontifício Conselho para os Leigos reconheceu, finalmente, as Equipas de Nossa Senhora (ENS) como Movimento de Fiéis Leigos. O Movimento expandiu-se por todos os continentes. Entrou, em Portugal, em 1957.
Sessenta anos depois, são celebrados os êxitos imensos deste Movimento de espiritualidade conjugal, apesar das dificuldades e dos limites que a moral familiar oficial impõe. No entanto, muitos casais das ENS interrogam-se: onde teremos falhado para que alguns dos nossos filhos não se casem pela Igreja e nem os seus filhos querem baptizar? Andaram em colégios católicos, foram à catequese, alguns até foram catequistas, pertenceram a movimentos juvenis da Igreja e, depois, nada! Resta-lhes a consolação de que alguns valores essenciais informem as suas vidas.
3. Esta sensação de culpa não tem, por vezes, muita razão de ser. Já não estamos no tempo em que os pais e as mediações de formação da Igreja eram as únicas referências no crescimento dos filhos. Vivemos em sociedades abertas e os mais novos, para além da natural rebeldia da juventude, podem dizer aos pais, de forma clara ou velada: eu já não vou por aí.
Uma observação destas não pode servir, todavia, para a resignação dos pais, dos educadores católicos e da pastoral da Igreja no seu conjunto.
Tendo em conta o que está a acontecer, seria preciso, depois de um debate alargado a paróquias, dioceses, movimentos e universidades católicas, reunir um Concílio dedicado exclusivamente à moral familiar proposta na Igreja e ao reexame do que se passa nas outras religiões e nas diversas manifestações da sociedade civil.
Para o vigente Código de Direito Canónico, "O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si a comunhão íntima de toda a vida, ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole, entre baptizados foi elevado por Cristo nosso Senhor à dignidade de sacramento. Pelo que, entre baptizados, não pode haver contrato matrimonial válido que não seja, pelo mesmo facto, sacramento." (Cân. 1055).
As implicações teóricas e práticas desta apresentação do casamento merecem um amplo debate que não é para esta crónica. A pergunta que deixo é outra: que pretende quem procura celebrar um casamento católico e o que recusa quem, embora baptizado, não quer casar pela Igreja?
As dimensões de vida, a importância, as ambiguidades e mesmo os equívocos, que envolvem a opção por uma união de facto, um casamento civil ou um casamento religioso, não cabem em apreciações e valorizações esquemáticas.
É normal que a celebração do matrimónio suscite uma vontade de festa que não tem de ser uma exibição de riqueza real ou aparente. A Igreja, sem negar a importância de uma grande festa, deve propor, aos ricos, uma ocasião para repartir com os pobres. Os Encontros de Preparação para o Matrimónio (CPM), devem ajudar a perceber que os noivos não estão obrigados a promover a indústria dos “casamentos de sonho”.
 
Frei Bento Domingues, O.P. (Fonte: PÚBLICO, 18.10.2009)
 
publicado por Re-ligare às 18:34
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