Blog dos docentes, investigadores e alunos de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona (Lisboa)
.posts recentes

. RAMADAN - PRIMEIRA PARTE

. FALTAM APENAS DUAS SEMANA...

. JEJUM, UM ALIMENTO PARA A...

. “LA ILAHA – ILLA LLAH” – ...

. MI'RAJ — A Ascensão do Pr...

. RELEMBRANDO: A NOITE DE M...

. OS INÚMEROS BENEFÍCIOS PE...

. OS INÚMEROS BENEFÍCIOS PE...

. OS PRIVILÉGIOS E AS RESPO...

. SURAT FUSSILAT

.arquivos

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Abril 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

Terça-feira, 22 de Fevereiro de 2011
O Judaísmo: “religião do livro”? - II

 

Na reflexão precedente dizíamos que a expressão «religião do livro», aplicada ao Judaísmo, caracterizaria este desde o início, pois uma das suas correntes «fundadoras» – os Deuteronomistas – assim o entendiam. Vimo-lo na abordagem a um dos textos mais importantes da chamada «história deuteronomista»: 2 Rs 22-23. Efectivamente, este texto é não só considerado o «mito fundador» da «escola deuteronomista», como também do próprio Judaísmo como «religião do livro» (entenda-se da «torah»). Agora, na segunda parte da nossa reflexão, vamos precisar ainda mais esta questão, abordando três outros aspectos do problema: a identidade dos «Deuteronomistas», a centralização do culto em Jerusalém e a fixação da Tora[1].

 

 

Afinal, quem são os «Deuteronomistas»?

Depois que Martin Noth «descobriu» a «história deuteronomista», em 1943, os estudiosos muito se têm interrogado acerca do(s) autor(es) de dita história. Provavelmente, trata-se de uma «escola» (ou corrente), com raízes na burocracia monárquica pré-exílica (pensemos na família Chafan, mencionada em 2Rs 22 e 25; 2Cr 34; Ez 8,11; e Jeremias).

A maioria destes escribas da corte terá acompanhado o rei de Judá, Joiaquin, aquando da primeira deportação em 597, levando consigo para a Babilónia uma pequena «biblioteca» constituída no final da época monárquica. Na Babilónia, muito provavelmente, estes escribas foram incorporados à administração local. E depois, no final do período babilónico, quando regressam os primeiros «retornados» da golah, uma parte deles volta também a Yehud Medinata (a província persa de Yehud), acompanhando Zerobabel, provavelmente nomeado «governador» pelos Persas. Outra parte permaneceria na Babilónia, estando na origem de uma outra corrente historiográfica: a «história cronista» (os livros das Crónicas, Esdras e Neemias).

A «história deuteronomista» teria então sido elaborada: no final do período babilónico ou no início da época persa. Primeiro, estes autores colocavam as suas esperanças no restabelecimento da dinastia davídica, mas os Persas em breve contrariariam essas esperanças, substituindo Zerobabel por outro governador. O templo de Jerusalém tardava a ser reconstruído – e, provavelmente, só o foi com Neemias (cf. 2Mac 1,18) – e os Deuteronomistas eram confrontados a outras correntes, oriundas de meios proféticos e sacerdotais, com as quais irá elaborar uma obra de compromisso: a Tora.

 

 

A centralização do culto em Jerusalém

Evocar os Deuteronomistas é, muitas vezes, pensar na reforma josiânica da centralização do culto em Jerusalém (2Rs 22-23), que é como que anunciada no início do chamado «Código Deuteronomista» (mais concretamente em Dt 12). Foi essa a percepção da exegese de Oitocentos, como vimos na reflexão anterior. Porém, já dizíamos aí que essa «centralização do culto» foi progressiva e devida, em grande parte, a acontecimentos externos (a destruição dos «lugares altos» pelos Assírios e a salvação «milagrosa» de Jerusalém em 701 a.C.). Por outro lado, a reforma de Josias teve pouco impacto, já que o templo seria destruído em 587, pelos Babilónios.

Uma leitura atenta de Dt 12 revela também uma «evolução» da compreensão deste tema. Efectivamente, os exegetas detectam três redacções sucessivas da chamada lei da centralização do culto, que são outras tantas releituras de épocas diferentes: a primeira (vv. 13-18) constata o «facto» da centralização – a passagem de muitos santuários para um só, Jesusalém, por escolha divina (que os acontecimentos permitiram) – e retira as consequências práticas em relação ao consumo de carne «profana» (os matadouros; cf. vv. 15-18); a segunda (vv. 8-12) mostra claramente que se dirige a uma audiência no estrangeiro, identificada à «geração do deserto», antes da entrada no país, para quem (já) não existe templo, mas que está segura da presença divina – Deus não habita no templo, mas no céu (cf. 26,15), e aquele (o templo) é apenas a morada do seu «Nome» (v. 11) –, podendo por isso adorá-lo e prestar-lhe culto mesmo no exílio; a terceira (vv. 2-7) reflecte um contexto de conflito com os «cultos ilegítimos» – na verdade, os retornados da golah temem perder a sua identidade (eles consideram-se o «verdadeiro Israel»), e a centralização do culto (no Segundo Templo) é essencialmente um pretexto para a separação em relação aos goyim, isto é, aos «povos» (v. 5).

Em suma, a lei da centralização do culto era, originalmente, a exaltação da «proeminência» do (primeiro) templo de Jerusalém, por vontade/escolha divina. Mas esse templo foi destruído. Isso não impediu os membros da golah de prestar culto ao «Deus dos céus», porque este estava com eles no exílio (o templo serve apenas de morada do seu Nome/Shem e não da sua Presença/Kabod). De regresso a Yehud, estes escribas apoiam a construção do (segundo) templo, mas ao serviço da ideologia da segregação. Efectivamente, eles são confrontados também à existência de outros templos javistas fora de Jerusalém: o templo de Elefantina no Egipto, o templo do Monte Garizim na Samaria e a «casa de Yhw» na Indumeia.

 

 

A fixação da Tora

Com a construção do Segundo Templo em meados do séc. V – seguindo a sugestão de D. Edelman – tornou-se necessário que as elites administrativa (produtora da «história deuteronomista») e sacerdotal (autora do «documento P») chegassem a um consenso na elaboração de um documento que fornecesse uma identidade comum ao Judaísmo nascente, e fosse aceite tanto pelos judeus do país como pelos judeus da diáspora. A Tora é, precisamente, um documento de compromisso, elaborado a partir do grande «mito das origens» (sacerdotal) e da «história de Moisés» (deuteronomista, e que enquadrava precisamente o «Código Deuteronomista», em Dt 12-26).

Ora, duas passagens da Tora são particularmente significativas para o tema que nos ocupa. A primeira é a «releitura» da figura de Abraão num contexto abrangente[2], identificativa para os membros provenientes da golah: Abraão é apresentado como o «modelo de fé», que escuta a palavra de Deus [digamos, a «torah»] e se põe a caminho da Terra Prometida: Canaã (12,1-4a). O que é interessante é que esta leitura mostra um Abraão a edificar altares a Javé (12,5-9; 13,4.18), sem neles fazer sacrifício algum (o único sacrifício de Abraão será feito no monte Moriá, em Gn 22,2, numa alusão a Jerusalém, cf. 2Cr 3,1). Estes «altares», provavelmente, são uma alusão aos lugares de culto, sem sacrifício, uma espécie de «proto-sinagogas», a que também aludiria a passagem de Dt 6,9 («Escrevê-la-ás [esta torah] sobre as ombreiras da tua casa e nas tuas portas»).

A segunda passagem é a chamada «lei sobre o rei» (em Dt 17,14-20). Se ela for tida como uma lei do tempo de Josias, ela será realmente uma lei revolucionária, pois obrigaria o rei a submeter-se a uma lei exterior a ele – o que é inaudito no Medio Oriente antigo, onde era o rei quem fazia a lei. O mais provável é que esta lei seja da época babilónica, servindo como introdução ao fracasso da monarquia (a leitura deuteronomista presente em Samuel-Reis), ou mesmo da época persa, para significar que o governador de Yehud deveria submeter-se à Tora que estava a ser elaborada[3].

Concluindo, nesta dupla reflexão apercebemo-nos que existe uma corrente, nas origens do Judaísmo, que quer fazer deste uma «religião do livro», da «torah de Moisés». Se inicialmente haviam sido ferverosos defensores da centralidade do culto no templo de Jerusalém (no tempo de Josías), os descendentes destes escribas reais foram relativizando esse mesmo templo, para promoverem «lugares de culto» sem sacrifício, onde era lida a Tora de Moisés.

 



[1] Nota bibliográfica: Além dos textos já mencionados, veja-se o debate acerda da «escola deuteronomista» em Raymond F. Person [2009], «In Conversation with Thomas Römer, The So-Called Deuteronomistic History: A Sociological, Historical and Literary Introduction», in http://www.arts.ualberta.ca/JHS/Articles/article_119.pdf; e Id., The Deuteronomic History and the Book of Chronicles: Scribal Works in an Oral World, SBL, 2010. Acerca da construção do Segundo Templo, ver D. Edelman, The Origins of the ‘Second Temple’. Persian Imperial Policy and the Rebuilding of Jerusalem, Equinox, 2005.

[2] No documento sacerdotal, Abraão é uma figura central – o «pai de Israel» – e desempenha um papel verdadeiramente «ecuménico» (veja-se o «parentesco» de Israel com todos os povos vizinhos). Esta figura não era propriamente do agrado dos Deuteronomistas e da sua ideologia segregacionista. Por isso, esta «releitura» de compromisso não é propriamente «deuteronomista» (provavelmente, não há textos deuteronomistas no livro dos Génesis, ao contrário do livro do Êxodo), mas surge em meios próximos dos Deuteronomistas.

[3] O termo «deuteronómio» é traduzido, habitualmente, por «segunda lei», pressupondo que existia já uma lei, apresentada nos livros precedentes – e os exegetas, contribuiram para esta visão das coisas, ao apresentarem o Código Deuteronomista como uma «releitura» do Código da Aliança (Ex 20-23). O sentido, porém, é outro. O termo da LXX deuteronomos remete, precisamente, para a lei sobre o rei, quando diz que este deve «fazer uma cópia [um duplicado] desta lei» (Dt 17,18). Ora, isto lembra aquilo que acontecia no império Persa, em que as leis do rei eram «copiadas» pelas gentes do país (das várias províncias persas).

 

Porfírio Pinto

Investigador

 

publicado por Re-ligare às 10:39
link do post | comentar | favorito
Sexta-feira, 4 de Fevereiro de 2011
O SALAH - A ORAÇÃO NO ISLÃO – 2ª. Parte

Assalamo Aleikum Warahmatulah Wabarakatuhu (Com a Paz, a Misericórdia e as Bênçãos de Deus)
Bismilahir Rahmani Rahim (Em nome de Deus, o Beneficente e Misericordioso)


JUMA MUBARAK

 

“E ordena à tua família o culto (a oração) e sê constante na sua prática...” 20:132 O Salah (oração), consiste em sequências de actos físicos e de orações/preces, que são repetidos em cada oração. Cada sequência chama-se “Rakah”. O número de rakahs é diferente para cada uma das 5 orações obrigatórias prescritas para o dia e também para a oração congregacional de Juma (sexta-feira), dia sagrado para os muçulmanos.


São 5 orações diárias, prescritas para cada hora do dia: Fajr, antes do nascimento do sol; Dhuhr, a meio do dia; Assr, a meio da tarde; Maghrib, imediatamente após o pôr do sol; e à noite, Isha’a, com início, cerca de uma hora e meia após o pôr do sol. Nas sextas-feiras é efectuado o salat de Juma, em congregação, que substitui o salat Dhuhr.


Em cada uma das 5 orações, temos as rakats obrigatórias (Fard), as feitas insistentemente ou não pelo Profeta (Sunnah), as facultativas (Nafl) e as de número impar, efectuadas depois da ultima oração da noite (Witr). Nos Sunnah, existem duas categorias; as feitas com insistência pelo Profeta (Sunnat-Mu’akkadah) e as feitas ocasionalmente (Sunnat-Ghair-Mu’akkadah).


Existem dois tipos de Fard (obrigações): O Fard al-Ayan (obrigação individual) e o Fard al-Kifayah (obrigação da comunidade). O Fard al-ayan, é uma obrigação individual, a qual cada um responderá perante Deus. É o exemplo das 5 orações e do jejum no mês de Ramadan. “A pessoa que perdeu uma oração, é igual aquela que perdeu toda a sua família e bens”. O Fard al-Kifayah é a obrigação da comunidade residente. Se alguns dos residentes o praticarem, estarão os restantes livres das responsabilidades. É o exemplo da oração fúnebre. Se as obrigações não forem
observadas por alguns, então serão todos os membros da comunidade responsabilizados por isso.


Dentro dos Sunitas e nas 4 escolas (imamos), não existe nenhuma divergência no que se refere ao número de rakats para cada uma das orações fards (obrigatórias). No total, são 17 rakats distribuídos pelas 5 orações diárias. No que se refere às orações Sunnah, verificam-se algumas pequenas diferenças nos 4 imamos, mas que não trazem qualquer inconveniente.. Existem hadices autênticos que nos incentivam às
seguintes praticas de orações sunnah, antes ou depois das obrigatórias: 2 rakats antes da oração da manhã; 4 rakats antes e 2 rakats depois da oração fard de Dhuhr; 2 rakats depois de fardh Maghrib; 2 rakats depois da oração obrigatória de Isha’a; 4 rakats depois da oração em congregação de Juma.

As orações devem ser observadas dentro das horas prescritas. No caso de impossibilidade, deve-se efectuar a oração, imediatamente na primeira oportunidade. A oração assim efectuada, depois da hora prescrita, denomina-se de “Qadá”. Quando em viagem, para uma distancia superior a 77 Kms, as 4 rakats para cada uma das orações de Dhuhr, Assr e Isha’a, são reduzidas para 2 rakats. A oração de Witr depois de Isha’a, deve ser feita. É a oração de “Cassr”-Salat al-Mussafir. “E quando viajardes pela terra, não é pecado para vós abreviardes a oração.” 4:101. Referiu
o Profeta (Salalahu Aleihi Wassalam): “A redução da oração na viagem é um Sadacah (uma dádiva) que Allah vos deu, portanto aceitai o Sadacah de Deus.”- Relato de Musslim).


Para além das 5 orações obrigatórias, existem outras orações que devem ser observadas, de acordo com as necessidades, ou obrigação como muçulmano, como por exemplo: -Tahiatul Uzhú, 2 rakats depois de se fazer as abluções – prática que garantiu o paraíso a Bilal (Radiyalahu an-hu), Muazin do Profeta (Salalahu Aleihi Wassalam); -Tahiatul Masjid, ao entrar, 2 rakats de saudação à Mesquita; -Salatul Janázah, oração fúnebre em congregação - o muçulmano falecido tem os seus direitos perante a comunidade: ser lavado, ser coberto com um pano branco (cafan) e ser realizada uma oração fúnebre; -Salat Iss’tikhárah, quando o muçulmano necessita de alguma orientação divina para os seus problemas ou quando necessita de escolher entre algumas alternativas permitidas, deve efectuar duas rakats, louvar a Deus, enviar Durud para o Profeta e fazer uma prece; -As orações de Idul Adhá e Idul Fitr, em congregação, nas duas festas religiosas; -Salat Tarawi, durante as noites do mês de Ramadan; -Salat Taubah, com vista a pedir perdão a Deus, por algum pecado cometido; -Salat Haja, quando alguém se debate com algum grave

problema relacionado com este mundo ou com o além (akhirat), deve efectuar 2 rakats, louvar a Deus, enviar Durud e fazer duá (prece):  Implorem a ajuda de Deus com paciência e oração”. 2:45; -Salat Tahajud, é a oração facultativa que foi muito praticada pelo Profeta (Salalahu Aleihi Wassalam): devemos acordar à noite efectuar entre 2 ou mais rakats, na solidão e no silencio da noite, mas na presença de Deus,
nosso Criador e Sustentador, fazer duá (prece); -Salat Tasbih, recomendado pelo Profeta (Salalahu Aleihi Wassalam); -Salat para pedir chuva, quando a comunidade sente os efeitos da seca.


O mundo é uma Mesquita!. O muçulmano pode efectuar as orações em qualquer lugar, desde que se encontre limpo. É uma benesse de Deus, porque qualquer lugar do mundo pode servir para lugar de adoração. Apesar de podermos fazer as orações individualmente, é recomendada a oração em congregação (Jama’ah), nas Mesquitas, na falta destes, nos locais definidos pela comunidade. A oração em congregação vale
25 ou 27 vezes mais, em relação a efectuada individualmente. O Profeta (Salalahu Aleihi Wassalam) elevou o valor de 3 Mesquitas, conforme foi referido por Anáss Ibn Málik, em IbnMája/Michkat: “A recompensa da oração obrigatória feita em casa é de uma vez; Na Mesquita é de 25 vezes; Na Mesquita durante a oração de sextafeira, é de 500 vezes; Na Mesquita Al-Aqsá (Jerusalém) é de 5.000 vezes; na Mesquita do Profeta em Madina (Massjid Nabawi) é de 50.000 vezes; e na Mesquita em Maka (Massgidul Háram) é de 100.000 vezes.”


Um bom dia de Juma, com muitas e muitas orações.


Cumprimentos,


Abdul Rehman Mangá
03/02/2011

publicado por Re-ligare às 14:32
link do post | comentar | ver comentários (9) | favorito
Quinta-feira, 3 de Fevereiro de 2011
O Judaísmo: «religião do livro»? - I

É costume usar a expressão «religião do livro» referida às três grandes religiões monoteístas – Judaísmo, Cristianismo e Islão –, a quem teriam sido reveladas as mensagens divinas contidas num livro sagrado: a Tora – a Bíblia – o Alcorão. Esta designação parece provir da fórmula corânica «Ahl al-kitâb [as gentes do Livro]», mas é também bastante corrente no Judaísmo, que se considera a si mesmo como «am ha-sefer [o povo do Livro]». E donde viria esta qualificação?

Hoje em dia, os estudiosos estão de acordo em considerar que o Judaísmo, enquanto religião, surge apenas no início da época persa (ou seja, após o exílio da Babilónia), sendo o resultado de um debate/partilha teológico/a entre vários grupos ou movimentos: por um lado, os «deuteronomistas», que querem um Judaísmo (essencialmente) «religião do Livro»; os «sacerdotes», que consideram que ele deve ser (sobretudo) uma «religião do Culto [sacrificial]»; e os «profetas», para quem o Povo eleito tem uma especial «missão» na terra, a de testemunhar a grandeza de Javé. Neste nosso «teologizar», vamos apenas abordar a perspectiva deuteronomista, começando precisamente por estudar o «mito fundador» da «religião do Livro»: a descoberta do «livro da lei/aliança» no templo de Jerusalém, durante o reinado de Josias ben-Amon (cf. 2Rs 22-23; 2Cr 34-35).

 

 

Da «piedosa fraude» ao «topos literário»

Desde o início do século XIX, altura em que W. De Wette «descobriu» a «fonte» deuteronomista, que este texto adquiriu uma importância extraordinária. Alguns Padres da Igreja haviam já insinuado que o livro descoberto pelo sumo sacerdote Hilkias, no templo de Jerusalém, podia muito bem ser o livro do Deuteronómio, mas foi De Wette quem o demonstrou, pois as reformas religiosas levadas a cabo pelo rei Josias correspondiam perfeitamente às normas do Código Deuteronomista (cf. Dt 12-25). Sem pôr em causa a historicidade deste «achado», os exegetas de Novecentos desenvolveram a teoria da «fraude piedosa»: os sacerdotes e levitas de Jerusalém teriam redigido o Código Deuteronomista para promover a reforma religiosa de Josias – quando este chegasse à maioridade –, tendo-o disfarçado de «Testamento de Moisés» e escondido no templo, de modo a ser facilmente descoberto.

Hoje em dia, porém, duvida-se da própria historicidade da descoberta. Efectivamente, na sua forma final, o relato já tem em conta a destruição do templo e o exílio da Babilónia (veja-se a profecia de Hulda), e parece sugerir que, em definitiva, a purificação do Templo não foi decisiva, tendo a «descoberta» do livro possibilitado adorar Javé sem necessidade de templo algum. A própria análise literária do texto aponta para aí, dado que parece haver duas narrativas que se sobrepõem e que poderiam ser independentes (veja-se a versão paralela em 2Cr 34): a) a narrativa das obras no templo (22,3-7.9) e a reforma religiosa em Judá (23,4-14); b) a narrativa da descoberta do «livro da aliança» (22,8.10-20; 23,1-3) e as reformas «deuteronomistas» (23,15-27). Duvidando da historicidade desta última, os exegetas actuais inclinam-se a considerá-la um «construção [topos] literária» posterior[1].

 

À procura de uma identidade

A análise deste texto fundamental permitiria distinguir três etapas. A primeira situar-se-ia ao nível dos Anais dos Reis de Judá, nos quais era referida uma reforma religiosa levada a cabo por Josias, em Judá (e, particularmente, no templo de Jerusalém). A segunda, no final do período neo-babilónico, momento em que o(s) autor(es) deuteronomista(s) terão introduzido na antiga narrativa o motivo da «descoberta» do livro (bem conhecido na Mesopotâmia), como um sinal divino legitimador de dita reforma. A terceira ocorreria já no período persa, em que a referência ao «livro da aliança» se transforma em fundamento de uma religião sem templo. Mas vamos por partes.

A reforma religiosa de Josias seria o culminar de uma evolução do pensamento religioso em Judá. Embora seja verdade que não existe documento algum do reinado de Josias que prove a veracidade da sua reforma religiosa, há porém importantes indícios iconográficos (glípticos) que testemunham uma mudança importante em finais do séc. VII: os motivos astrais que, desde os finais do séc. VIII, eram característicos dos selos da aristocracia e dos funcionários reais, desaparecem totalmente com Josias – ora, esta situação parece corresponder ao núcleo da reforma religiosa apresentada em 2Rs 23,4-14. Além disso, ao longo do séc. VII, Jerusalém (e o seu templo) foi ganhando cada vez maior importância: se é verdade que as campanhas assírias de Senaquerib haviam destruído, num primeiro momento, a maior parte dos santuários e «lugares altos» de Judá, contribuindo para uma certa «centralização» do culto em Jerusalém, o facto decisivo, porém, é a não conquista da capital, após um prolongado cerco à cidade. Na memória judaica, foi Javé quem salvou Sião (vide Isaías e Salmos) e a escolheu como sua morada (vide lei da «centralização do culto», em Dt 12). Portanto, com toda a probabilidade, no momento em que a Assíria se retira do Levante, Josias promove uma importante reforma religiosa.

Os acontecimentos de 597 e 587 vieram, no entanto, modificar completamente a situação: Jerusalém cai agora nas mãos dos Babilónios e o templo de Javé é destruído. No contexto da mentalidade do Médio Oriente antigo, Javé é um deus vencido e sem futuro; mas não para os escribas de Israel: a chamada «história deuteronomista» (HD) explica o desastre, não como uma derrota de Javé, mas como um castigo pelo «pecado» do povo e dos seus dirigentes (ideia fundamental que se encontra em Juízes, 1/2Samuel e 1/2Reis); por isso, eles convidam o «verdadeiro Israel» (a golah babilónica) à fidelidade à «aliança» que Javé estabeleceu com o seu povo (Deuteronómio), para que possam regressar à Terra da Promessa (Josué).

É possível que a narrativa da «descoberta» do livro – ou da «pedra de fundação» – tenha sido introduzida nesse momento, como motivo tomado de empréstimo à cultura mesopotâmica (veja-se o que acontece nas reformas religiosas de Nabónido). Neste caso, a «descoberta», tal como acontece com o rei da Babilónia, serve a legitimar as importantes reformas religiosas de Josias que, apesar de tudo, não puderam evitar o «desastre», devido sobretudo à acção dos «maus reis» de Judá (Manassés e Amon). No entanto, nos anos posteriores ao exílio, entre 539 e 400 a.C., tem lugar a elaboração da Tora, com a colaboração activa dos «deuteronomistas». Neste contexto, o «livro» descoberto no templo de Jerusalém é, cada vez mais, identificado com o «livro da aliança» ou o «livro da lei [torah]», que não se resume apenas ao Código Deuteronomista (o livro do Deuteronómio), mas é constituído agora por um conjunto narrativo de que fazem também parte outras colecções legais de Israel: o Código da Aliança (Êxodo) e os códigos sacerdotais (Levítico). Curiosamente, o contexto da leitura do «livro da Aliança» por Josias (cf. 2Rs 23,1-3) assemelha-se muito ao da leitura do «livro da Lei [de Moisés]» por Esdras (cf. Ne 8,2-6).



[1] Nota bibliográfica: sobre os Deuteronomistas e a evolução redactorial do texto de 2Rs 22-23, veja-se Thomas Römer, La première histoire d’Israel. L’École deutéronomiste à l’œuvre, Genebra, Labor et Fides, 2007, pp. 55-62; sobre o alcance da descoberta do «livro da lei», ver Jonathan Ben-Dov, «Writing as Oracle and as Law: New Contexts for the Book-Find of King Josiah», in JBL 127, 2 (2008), pp. 223-239; enfim, sobre a exegese recente de 2Rs 22-23, ver ainda David Henige, «Found But Not Lost: A Skeptical Note on the Document Discovered in the Temple under Josiah», in Journal of Hebrew Scriptures, 7 (2007) – http://ejournals.library.ualberta.ca/index.php/jhs/article/view/5657.

 

                  

Porfírio Pinto

Investigador

 

publicado por Re-ligare às 17:41
link do post | comentar | favorito
.mais sobre mim
.pesquisar
 
.Julho 2012
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
.links
blogs SAPO
.subscrever feeds