SUMA TEOLÓGICA DE FOLHAS SUBSTITUÍVEIS, de Frei Bento Domingues,O.P.
31. Janeiro. 2010
1. Celebrou-se, na Igreja Católica, no passado dia 28, a festa de S. Tomás de Aquino (1225-1274). Antes, era celebrada no dia 7 de Março e, em muitos lugares, sobretudo nas escolas católicas, com pompa e circunstância.
Umberto Eco, no sétimo centenário da sua morte, escreveu um divertido elogio deste santo e condenado teólogo que, num contexto de grande turbulência, “em quarenta anos, mudou toda a política cultural do mundo cristão”. Lamentou que este incendiário, com o tempo, tenha sido transformado em bombeiro. Pergunta U. Eco: o que faria este teólogo se vivesse hoje? Os seus comentários já não seriam sobre Aristóteles e “aperceber-se-ia que não podia nem devia elaborar um sistema definitivo, como uma arquitectura acabada, mas uma espécie de sistema móvel, uma Suma de folhas substituíveis, porque na sua enciclopédia das ciências entraria a noção de provisoriedade histórica. Não sei dizer se ainda seria cristão. Julgo que sim. Sei, de certeza, que participaria nas suas comemorações apenas para nos recordar que não se trata de decidir como usar ainda aquilo que ele pensou, mas de pensar outra coisa. Ou, no máximo, de aprender com ele como fazer para pensar com limpeza, como um homem do nosso tempo. Depois disso, não queria estar na sua pele”.
De facto, nos finais do século XIX, Tomás de Aquino foi proposto como a resposta católica a todos os problemas. Os que seguiram por esse caminho tornaram-se repetidores estéreis e esterilizaram o campo teológico. Verdadeiramente fiéis a S. Tomás, foram aqueles que, tendo estudado a sua obra em profundidade, situando-a na história e assumindo, com discernimento, a problemática de cada época, incarnaram a sua criatividade como, por exemplo, no século XX, Joseph Lagrange, Dominique Chenu, K. Rahner, Y. Congar, E. Schillebeeckx, etc.
2. É sabido que Tomás de Aquino – autor de uma obra imensa, de vários géneros literários – não acabou a construção da Suma Teológica. Por uma razão estranha, a terceira parte ficou a meio, quando elaborava o tratado dos Sacramentos. Conta um seu confrade que, a partir do início de Dezembro de 1273, depois de ter celebrado Missa, abandonou a escrita e respondeu a quem lhe perguntava porquê: “Não posso mais. Depois do que vi, parece-me palha tudo quanto escrevi”. A “iluminação” eclipsou o interesse pelos tecidos da razão.
Os êxtases contemplativos não eram coisa rara na sua vida, mas a partir daquela experiência mística, ninguém arrancou mais nada àquele investigador incansável, com doze secretários à sua disposição, ditando a três ao mesmo tempo. Não era por cansaço intelectual, tanto mais que, no começo do ano seguinte, pôs-se a caminho para o Concílio que Gregório X convocou, para Maio de 1274, em Lião, tendo em vista um entendimento com os gregos. Na viagem, sofreu um acidente físico grave. Ainda ditou uma resposta breve e luminosa ao Abade do Monte Cassino que o interrogou acerca das relações entre conhecimento divino e contingência. Tentou retomar a viagem, mas teve de recolher ao mosteiro de Fossanova, onde morreu a 7 de Março de 1274.
3. Esquecemos que Tomás de Aquino interrompeu uma obra de grande sucesso que ele próprio concebeu, por razões pedagógicas, como guia de principiantes no estudo da teologia, dada a dispersão em que esta se encontrava, no século XIII, produzindo nos estudantes confusão e fastio. Muitos dos seus utilizadores esqueceram, no entanto, que se tratava de um guião de pesquisa, não de uma resposta prévia a tudo e para sempre.
Observei, muitas vezes, que mesmo aqueles que destacaram a influência mística do Pseudo-Dionísio sobre Tomás de Aquino, não a tomavam verdadeiramente a sério, isto é, como informando toda a sua construção racional. Esse teólogo bizantino do século V ou começos do século VI, que se fez passar por discípulo de S. Paulo, marcou a teologia de Tomás até à raiz. A teologia apofática (do gr. apofatikos, não afirmativa) – também designada por “teologia negativa” – faz parte da própria epistemologia da construção da Suma, aliás, como do conjunto da sua obra teológica. Não se trata de uma teologia do silêncio, sem afirmações positivas, mas da consciência de que todas as afirmações brotam de um fundo sem fundo do mistério que Deus é. A fé como adesão da pessoa não tem como terminal as afirmações do Credo. Estas são, apenas, mediações para conduzir o crente para o Deus misterioso, que não cabe em nenhum conceito, em nenhuma imagem, em nenhuma metáfora. A “teologia negativa” afecta todas as afirmações da fé para que nenhuma delas dê a ideia de que temos a posse de Deus. Pelo contrário, somos nós que vivemos, nos movemos e existimos n’Aquele que excede, infinitamente, todo o conhecimento e todo o amor.
Quando não se tem isto em conta, de forma consciente, corre-se o perigo de usar a palavra Deus e as expressões, plano de Deus, vontade de Deus, presença de Deus, acção de Deus, lei de Deus, etc., para manipular os crentes. A “teologia negativa” tem a função positiva de não permitir que os pregadores, os catequistas, os teólogos e a hierarquia falem de Deus com leviandade (1).
(1) Para conhecer a vida, a obra e a espiritualidade de S. Tomás de Aquino, recomendo Jean-Pierre Torrel, o.p., Iniciação a Santo Tomás de Aquino. Sua pessoa e obra, 1999; Santo Tomás de Aquino. Mestre espiritual, 2008, Ed. Loyola, São Paulo.
Fonte: PÚBLICO, 2010. 01. 31