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Quarta-feira, 30 de Março de 2011
Porque não «Deus de Judá»?

 

Javé foi, certamente, o «deus nacional» quer de Israel (Reino do Norte) quer de Judá (Reino do Sul). Curiosamente, porém, na Bíblia Hebraica – escrita no Sul (ou seja, em Yehud/Judá) – ocorre algo curiosíssimo: Javé-Deus é dito, frequentemente, «Deus de Israel» e nunca «Deus de Judá»! Como entender este fenómeno? E porque é que a exegese tradicional o ignorou?

Começando pela segunda pergunta, isso deve-se seguramente ao facto de que, até aos anos 1990, ninguém contestar a existência histórica do Reino Unido de Israel e Judá, sob David e Salomão, e que tinha precisamente o nome «Israel». Sendo assim, evidentemente, Javé sempre foi o «Deus de Israel». Contudo, hoje, esse cenário deixou de ser evidente[1]. Os testemunhos extrabíblicos ignoram a existência de um grande império davídico-salomónico, embora conheçam, perfeitamente, uma «casa de Omri» (= Israel, Reino do Norte) e uma «casa de David» (= Judá, Reino do Sul). A «casa de Omri» era um Estado poderoso no Levante, protagonista de um sistema de alianças com os povos vizinhos (sobretudo os Fenícios e os Arameus), uma colaboração que lhes permitiu, no séc. IX, resistir ao avanço da Assíria (a grande «Coligação de Damasco») e, no séc. VIII, criar uma rede comercial importante (o comércio com a Arábia). A «casa de David», ao invés, era um pequeno reino, pouco influente e, provavelmente, vassalo de Israel (no séc. IX) ou, pelo menos, dependente dele economicamente (no séc. VIII).

Isso explica, talvez, porque, com o desaparecimento do Reino do Norte em 722/720, Judá não menospreze ser «Israel», e o herdeiro também das suas tradições.

 

 

Quando Jacob se torna «patriarca» em Judá

Aqui há uns anos, no quadro de uma obra colectiva em que se homenageava Albert de Pury (um grande estudioso do ciclo de Jacob), Steven McKenzie realizou um levantamento do uso do nome «Jacob» nos Profetas (sobretudo nos chamados «Profetas Posteriores»)[2]. As suas conclusões são interessantes. Antes de 720, «Jacob» refere 1) um personagem relacionado com as origens do Reino do Norte (um «pai», um antepassado, um patriarca de Israel) e, por isso mesmo, 2) é também identificado com esse mesmo reino (ou seja , Jacob é «Israel») – assim acontece nos textos proféticos de Amós e Oseias (do Reino do Norte), e nos textos mais antigos de Isaías (aqueles que se referem à guerra siro-efraimita). Mas, após 720, «Jacob» ou 3) a «Casa de Jacob» tornam-se sinónimos de Judá e corresponderiam, nos profetas, à conhecida expressão deuteronomista «todo Israel»; além disso, 4) o nome refere ou alude ainda a um indivíduo, o que quer dizer que «Jacob» passou também a ser concebido como «antepassado», patriarca de Judá.

Assim sendo, podemos pensar que entre a queda da Samaria (em 720) e a queda de Jerusalém (em 587), algo se passou para que Judá assuma a «herança» de Israel. Nos últimos anos sobressaem duas explicações, num curioso debate entre dois influentes biblistas: uma de carácter mais histórico-literário (P. Davies) e outra, mais político-cultural (N. Na’aman).

 

 

A origem do «Israel bíblico»

Philip R. Davies, um dos autores mais influentes das duas últimas décadas, desenvolveu o que poderíamos chamar a «pista benjaminita»[3]. Tendo em conta a centralidade de Benjamin em alguns textos bíblicos, este autor defende a possibilidade da existência de uma «obra benjaminita», responsável pela emergência do «Israel bíblico» durante o período neobabilónio. Desta obra fariam parte: uma narrativa da conquista de Benjamin (Jos 6-9); várias histórias de «libertadores» do Reino do Norte (Jz 3-9), começando precisamente por um libertador benjaminita (Eúde); e a narrativa da acção do primeiro rei de «Israel», Saul, um rei benjaminita (1Samuel). A história «deuteronomista» do final do exílio seria elaborada como reacção a essa construção benjaminita, revalorizando por seu turno as tradições de Judá.

Davies, à semelhança de outros estudiosos (J. Blenkinsopp e E. Knauf), pensa que o santuário de Betel teve um grande impacto na transmissão das tradições do Norte (a gesta de Jacob, as tradições do êxodo, o livro dos «salvadores» de Israel, as memórias de Elias e Eliseu, etc.). Mas esse impacto está dependente da «emergência» de Benjamim, no início do período neobabilónio. Este território teria pertencido ao Reino do Norte e, durante o reinado de Manassés, foi incorporado a Judá (juntamente com Betel), para recompensar a fidelidade daquele monarca ao poder assírio. Após a queda de Jerusalém, e ao contrário de Judá, o território de Benjamin não foi minimamente afectado e o poder babilónio estabeleceu aí – em Mizpah – a capital da nova província de Yehud. É neste contexto, portanto, que surge a obra benjaminita referida antes: a criação de um «Israel» englobando Benjamin e Judá.

 

 

A herança religiosa de Israel

Nadav Na’aman defende uma outra perspectiva[4]. Ele não acredita que Betel tenha incorporado o reino de Judá antes de Josias (ou seja, antes do enfraquecimento e retirada da Assíria do Levante) e, quanto a Benjamin, defende a tradição bíblica segundo a qual Benjamin sempre pertenceu a Judá (cf. 2Rs 12), exceptuando algumas povoações de fronteira (como Jericó e Gilgal). Por isso, para explicar o fenómeno da «israelitização» de Judá, ele recorre a um evento político-cultural, muito próximo no tempo, que terá servido de modelo às elites judaicas: a destruição da Babilónia, em 689, por Senaquerib. O rei assírio fez deste acto um evento maior: levou para a sua recém-fundada capital, Nínive, os deuses da Babilónia e os seus textos fundamentais (que farão parte da grande biblioteca de Assurbanipal); promove em Nínive um grande festival anual em honra de Assur, deus nacional da Assíria (à semelhança do Akitu, celebrado em honra de Marduk); assume-se como o «herdeiro» cultural da Babilónia, fazendo de Nínive o «centro» do mundo; leva a cabo uma adaptação do mito babilónico Enuma Elish, na qual o deus Assur é agora o protagonista.

Segundo Na’aman, a emergência do «Israel bíblico» responde a um fenómeno semelhante, de carácter político-religioso. Israel, o Reino do Norte, foi tradicionalmente superior, em todos os domínios. Depois da sua queda, tornou-se uma província assíria e, evidentemente, Judá não poderia reclamar direito algum sobre esse território. Mas, com a retirada da Assíria do Levante, Judá anexou o santuário de Betel (que, no período neobabilónio, pertencia efectivamente à província de Yehud) e reclamou-se herdeiro do Reino do Norte, criando uma nova entidade étnico-religiosa chamada «Israel». Esta reivindicação seria consolidada com os escritos recebidos via Betel e, sobretudo, a adopção da grande festa religiosa israelita: a Páscoa (relacionada com a tradição do êxodo do Egipto, uma tradição que parece estar ausente nos profetas do sul, concretamente em Isaías e Miqueias). De facto, os textos bíblicos associam a celebração da festa da Páscoa a Josias (2Rs 23).

 

Em suma, a Bíblica Hebraica não usa o título «Deus de Judá» porque ela é já expressão de uma entidade étnico-religiosa chamada «Israel» – não o Israel unido de David e Salomão que, provavelmente, nunca existiu (e é uma construção literária), mas o «Israel» teológico do período do Segundo Templo (o «verdadeiro Israel»). E este Israel, como vimos, tem origem no final do séc. VII a.C., pela mão dos escribas de Josias (N. Na’aman), ou início do séc. VI, na elaboração historiográfica dos literati de Mizpah (P. Davies).



[1] Vejam-se os resultados da arqueologia em I. Finkelstein-N. A. Silberman, The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Sacred Texts, Nova Iorque-Londres-Totonto-Sidney-Singapura, 2001 ; Id., David and Solomon: In Search of the Bible’s Sacred Kings and the Roots of the Western Tradition, Nova Iorque-Londres-Totonto-Sidney-Singapura, 2006 ; I. Finkelstein-A. Mazar, The Quest for the Historical Israel, ed. por B. B. Schmidt,Atlanta, 2007.

[2] S. McKenzie, «Jacob in the Prophets», in J.-D. Macchi-Th. Römer (ed.), Jacob. Commentaire à plusiers voix de Gn 25-36. Mélanges oferts à Albert de Pury, Genebra, 2001, pp. 339-357.

[3] Cf. P. R. Davies, In Search of “Ancient Israel”, Londres-Nova Iorque, 1992 ; Id., The Origens of the Biblical Israel, Londres-Nova Iorque, 2009; Id. [2005], «The Origen of Biblical Israel», in http://www.arts.ualberta.ca/JHS/Articles/article_47.pdf.

[4] Cf. N. Na’aman, «Saul, Benjamin and the Emergence of “Biblical Israel”», in ZAW, 121 (2009), pp. 211-224 (parte 1) e pp. 345-349 (parte 2) ; Id., «The Israelite-Judahite Struggle for the Patrimony of Ancient Israel», in Biblica, 91 (2010), pp. 1-23 [cf. http://www.bsw.org/Biblica/Vol-91-2010/]. 

                

Porfírio Pinto

Investigador em Ciência das Religiões

publicado por Re-ligare às 12:24
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