
«Então a serpente disse à mulher: (…) sereis como Deus» (Génesis 3:4,5).
«Sereis como Deus», não é nenhuma proposta honesta ou promessa bondosa: é a mais pérfida, a mais manhosa, a mais matreira de todas as tentações.
Não, não caiamos nessa arriosca! Não nos bastaria sermos deuses, anjos ou demónios: a nossa grandeza, a nossa riqueza, a experiência extática da vida está no facto de sermos Homens! «O Homem de carne e osso, aquele que nasce, sofre e morre – sobretudo que morre», escrevia D. Miguel de Unamuno.
Escondida na aparente candura dessa oferta está uma ratoeira fatal:
«Sereis como Deus» é a tentativa da desumanização, da extinção do Homem. Implica anular a especificidade da sua existência, porque ser como Deus implicaria deixar de ser Homem. E isso é que não – tudo menos isso.
«Sereis como Deus» é um convite à fuga, à alienação; é a tentativa de levar o Homem a desistir de viver todos os pesares e prazeres que só o Homem pode experimentar. Significa levá-lo a perder todas as dores e doçuras que a vida de Homem nos traz: chorar e sonhar, errar e reinventar, cair e voar!
«Sereis como Deus» é a tentativa de encerrar o Homem no totalitarismo do único contra a liberdade da diversidade, da celebração da diferença. Melhor do que a mesmice de sermos todos como Deus é o facto de ninguém ser obrigado a ser como ninguém.
«Sereis como Deus» não chega: é melhor ser aquilo em que o próprio Verbo Divino se tornou: Homem!
Luís Melancia
Professor na Lic. de Ciência das Religiões
Caro Luís,
Mais uma vez nos trazes uma reflexão complexa. Já por várias vezes andei pelo trecho que referes e nunca ele me tinha despoletado o que dizes. Nunca o tinha olhado com os olhos com que mo apresentaste hoje.
E esse olhar levou-me ainda a um outro passo bíblico por onde tenho andado: as célebres tentações que sofre Jesus ao ir para o deserto. Ai, qual retoma desse momento inicial de onde Jesus viria buscar o resulotado do fruto do ventre de Eva, também a Jesus seria feita proposta semelhante.
A grande diferença é que Jesus podia já dizer Não! Sim, que é oferecido a Jesus senão... que seja Deus?
Por mais incongruente que nos possa parecer, a Jesus, Deus, o Demónio aferece que ... consiga ser efectivamente Deus. Sim, em termos estritos de poder, nada Jesus poderia desejar que não conseguisse.
O que é oferecido a Jesus, Deus, é que seja Deus à maneira do que seria um Homem a quem fosse possível ser ... Deus.
O que se mudificou, é que Eva nunca fora Deus e com a vertigem desse vislumbre embarcou na aventura. Jesus... sendo Deus... foi, de facto, Deus.
Retomada a natureza do episódio, tudo nas narrativas de Jesus seria diferente, ou não fosse ele a chave teológica da superação desse desejo antigo dos filhos de Eva em serem... Deus.
Abraço,
paulo mendes pinto
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